Capítulo 32: Sozinha Contra Um Milhão

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Rebeca estava eufórica como nunca a vi antes, nem mesmo quando fomos tomar a locomotiva, ela estava assim.

Eu estava cambaleando de sono, sua euforia não me contagiou; já passava das duas horas da madrugada, e muitas luzes já se apagaram, pois todos estavam, ou deveriam estar dormindo.

Fizemos uma breve pausa no vagão cafeteria. Estava aberto vinte e quatro horas por dia, pois este funcionava com máquinas automáticas. Tomei três xícaras de café expresso extra forte para tentar acordar. Enquanto isso Rebeca andava em círculos pelo local me aguardando.

Enquanto pegava uma quarta xícara, Rebeca cansou de esperar e me arrastou junto com ela, dizendo:

- Você pode tomar no caminho, vamos logo!

Não sabia para onde estávamos indo, apenas permiti que Rebeca me levasse ao bondinho, enquanto me afogava em café para manter os sentidos. Em menos de uma hora, paramos no vagão três mil; o vagão de pesquisas. Este vagão era um verdadeiro laboratório.

Puxei uma cadeira e sentei-me, pois mal conseguia ficar em pé. Meu relógio de bolso marcava pouco mais de três horas da manhã, e eu não havia repousado após o acidente no zoológico. Rebeca olhava para mim estalando os dedos para que eu não dormisse, ela estava ansiosa para contar seus planos a qualquer um que quisesse ouvir, até mesmo um leigo como eu.

Com a cabeça apoiada sobre o punho, me esforcei para ouvir o que ela dizia, enquanto ela esboçava com um giz na lousa do laboratório. Seu esforço em chamar minha atenção foi em vão, pois não entendi uma só palavra, uma vez que mal conseguia raciocinar. Enfim, a deixei falando sozinha e dormi naquela mesma cadeira, quando o efeito da cafeína passou.

De manhã, um anúncio automático me acordou:

- Atenção passageiros, a temperatura externa é de cento e quarenta e cinco graus abaixo de zero. Estamos percorrendo o território de Arkansas, Estados Unidos da América. Tenham um bom dia!

Me levantei, e a primeira coisa que senti foi um fortíssimo cheiro de café no local. Rebeca certamente o usou para ficar acordada a noite toda. Não só acordada, mas consciente o bastante para realizar todas as pesquisas que tinha em mente. Ela corria de um lado a outro do laboratório, entrando e saindo das várias salas. Estava tão concentrada em seu trabalho que não percebeu que eu havia acordado. Em um momento passava por mim portando rolos de mapas; em outro um computador portátil; ou mesmo um simples pendrive.

- Bom dia, Rebeca - Gritei para que me visse!

- Lindo dia, George! É um lindo dia! - Respondeu com sua alegria contagiante. Continuou: - Acorde, tome um café e se arrume. Temos muita coisa para hoje. Você só precisa se lembrar de tudo o que eu lhe disse ontem. - Concluiu enquanto se aproximava da mezinha onde estava uma cafeteira.

- Magnífico, Rebeca! É muito bom saber que alguma coisa está funcionando neste trem. Porém... Eu não lembro de absolutamente nada do que você falou ontem. Ou eu não consegui prestar atenção, ou você estava falando sozinha enquanto eu dormia.

Rebeca suspirou um pouco, mas com um sorriso compreensível, se propôs a repetir seu discurso da forma mais simples possível:

- Vou começar do princípio, George. Nove anos atrás, dezenas de países, lançaram na atmosfera uma mistura de cloreto de amônia com hidróxido de bário; o Projeto NH3. A mistura destes dois reagentes produz cloreto de bário e amônia; a substancia que encontramos na água. Mas tem outra coisa interessante: essa reação é incrivelmente endotérmica, ou seja, diminui de temperatura e congela muito rapidamente...

- Sim, Rebeca... Todos os dias eu vejo o quanto essa ideia funcionou. Aonde você você quer chegar? - Eu a interrompi.

- Continuando, George. Foram lançados milhares de misseis contendo essa substância em todo o planeta, para que essas reações químicas ocorressem continuamente e em pequenas quantidades por várias décadas. No entanto, o Sr. Nylton alterou o projeto e fez com que pequenas reações continuas dessem lugar à uma grande reação congelante... - Rebeca fez uma pausa, respirou fundo e prosseguiu: - Agora vem a parte curiosa: o Sr. Nylton não alterou não só a quantidade de produtos químicos, mas também a forma como eles se misturavam, ou seja em alguns lugares do planeta a reação foi mais rápida, e em outros, mais lenta...

- De novo, Rebeca... Aonde você quer chegar? - Interrompi mais uma vez.

- Vou simplificar: em algum lugar do planeta, o NH3 já reagiu e o produto da reação caiu e foi espalhado pelo vento, e nós o detectamos. - Ela concluiu sua explicação, esperando que eu tenha entendido.

- Não entendi nada, mas creio que você saiba o que faz.

Rebeca respirou aliviada. E enquanto se sentava disse-me:

- Agora só preciso explicar isso para os representantes de classe que estavam ontem no parque aquático, e que com certeza tiveram uma noite de sono melhor que a minha.

Não demorou muito, e a pedido de Rebeca, André, Santana e mais alguns membros das três classes que os acompanhavam, chegaram ao laboratório. Rebeca ofereceu-lhes assentos, mas optaram por ficar em pé para ouvir as explicações de Rebeca, tanto pela ideia apresentada ontem, tanto por estranharem sua repentina saída da festa tão tarde da noite; me arrastando consigo, além de tudo.

Como era esperado, Rebeca lhes disse tudo que havia dito a mim; mostrou-lhes e lhes explicou cada uma de suas anotação no quadro negro, tal qual uma professora expõem o conhecimento a seus alunos, embora parecesse mais com um paleontólogo explicando detalhadamente sua nova descoberta. Ela falou mais de uma vez, de um modo animado cada aspecto de sua teoria. No final, o Sr. Santana, cético como de costume, pediu à Rebeca uma prova concreta de que falara a verdade. E assim ela respondeu:

- Planejei isto a noite inteira. É claro que posso provar minhas palavras! - Rebeca manteve o suspense no ar por um pouco e caminhou calmamente a um computador na mesa ao lado.

No computador ela apertou um único botão e olhou para cima esperando que algo acontecesse. Sem saber o que esperar, todos nós repetimos o gesto, procurando algo no teto do vagão. De repente, escutamos um forte estrondo provindo do teto do trem; semelhante ao som de um tiro disparado da lataria externa do trem, do teto em direção aos céus.

No momento, ficamos espantados, temendo que o trem fora danificado, mas Rebeca fez gestos com as mãos, pedindo para que nos acalmássemos. Logo em seguida, o trem fez uma leve curva para a direita e Rebeca apontou da janela para o alto.

Estávamos curiosos com o ocorrido, e nos aproximamos da janela para ver o que Rebeca estava olhando. Ao olhar para o céu, todos ficaram espantados ao perceber que o trem havia disparado um balãozinho azul, com uma pequena luz vermelha piscando abaixo dele.

- O Expresso Frostcruiser está equipado com um conjunto de cinco sondas meteorológicas; balões como este, preenchido com um gás especial, capaz de flutuar apesar das baixíssimas temperaturas... - Rebeca foi interrompida pelo som do computador que ela havia usado; o balão meteorológico enviara seus dados.

Rebeca expôs as informações em um telão e prosseguiu:

- Como podem ver, a quantidade de NH3 no ponto onde a neve estava contaminada é baixíssima, quase nula!

Rebeca continuou explicando os dados recebidos, da mesma forma como explicou sua teoria. Pessoalmente, não entendi muito bem as informações, mas tenho certeza que os demais entenderam bem.

- Certo, Rebeca. Vamos supor que sua teoria esteja certa e que o planeta esteja descongelando. Como pretende encontrar um lugar aquecido? Vamos circular o mundo pelos próximos anos até eventualmente parar em um lugar sem gelo? - Disse o Sr. Santana em tom de ironia.

- Existe uma maneira mais rápida - Disse Rebeca - Neste momento, estamos no estado do Arkansas, faremos uma curva e seguiremos direto para Manitoba, no Canadá; depois para Oregon, voltando para os Estados Unidos da América e então vamos seguir de volta para cá, Arkansas. Assim, faremos um triângulo equilátero. Coletando os dados da neve ao longo deste percurso, teremos informações sobre a direção dos ventos. A lógica é simples; os fragmentos de NH3 que encontramos aqui vieram de outro lugar e o vento os trouxe. Se soubermos de onde eles estão vindo, saberemos aonde temos que ir.

Os representantes se entreolharam.

-Mudar os trilhos do Frostcruiser? Isso já foi feito antes? - Disse um deles.

- Não. Mas não será nenhum problema. Depois do Arkansas, seguiríamos para o Mississipi, só temos que fazer uma curva antes. -Rebeca os tranquilizou.

- Creio que não temos nada a perder, Rebeca. Não nos custa nada tentar. - Concluiu o Sr. Santana.

Frostcruiser: - O Expresso Fim do MundoOnde histórias criam vida. Descubra agora