Capítulo 5: O Passado Não se Apaga

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Por volta das dezoito horas, fui para o vagão que o guarda me indicou, o vagão oito mil e quinhentos. Foi uma longa viagem. O trem tem mais de cento e oitenta quilômetros de uma ponta a outra, mas o bondinho no porão do trem facilitou as coisas.

Era a primeira vez em quase uma década que eu havia saído do fundo, então tudo era uma surpresa nessa metrópole sobre rodas. O vagão oito mil e quinhentos era muito diferente dos primeiros. Parece que o Frostcruiser vai empobrecendo aos poucos, vagão por vagão, do luxo incondicional da Primeira Classe à pobreza extrema do fundo. Se de um lado temos um jardim botânico, do outro existe uma verdadeira favela. Me lembra o condomínio onde eu vivia. Na verdade, me lembra um pouco o fundo desse trem, com a diferença de que há janelas e um pouco mais de espaço.

Fui até a seção de administração, alguns vagões afrente, e me deram um cupom, valido em todo o trem para eu almoçar no dia seguinte. Segui até minha cabine. É como um apartamento pequeno e desleixado. Na verdade parecia uma daquelas casinhas de madeira reciclada das favelas do Rio de Janeiro. Eu estava acostumado com o vagão do fundo, portanto demorei um pouco para dormir aqui.

Na manhã seguinte, voltei ao trabalho no jardim. Ao chega lá, fui regar um arbusto perto do banco da praça e Rebeca, sobrinha da Senhora Martínez, estava sentada no banco lendo um livro. Ela ouviu o barulho do regador e olhou para mim tentado lembrar de alguma coisa...

— seu nome é George, certo? Ao comprar um bilhete de embarque, tive acesso a lista de funcionários da Primeira Classe e não lembro que seu nome estava na lista. De onde você surgiu? E porque ao invés do tradicional uniforme de jardineiro, em seu uniforme está escrito "risco biológico"?

Como não havia ninguém por perto, parei para explicar-lhe a situação:

— eu não estava na lista porque nem deveria estar a bordo desse trem! Entrei como clandestino e passei os últimos nove anos trancado no fundo do trem. Foi de lá que eu sai.

Ela ficou um pouco confusa:

— fundo? Está se referindo a Terceira Classe? Todos de lá são trabalhadores contratados pelo Sr. Nylton. Ninguém embarcou no Expresso Frostcruiser sem permissão.

— não estou falando da Terceira Classe. Mas sim ao vagão dez mil e um, onde estão os outros quinhentos clandestinos.

Ela ficou ainda mais confusa e assustada ao mesmo tempo. Parecia que nunca soube da existência do último vagão. O tempo passou rápido, Rebeca foi embora e no fim do dia eu ia voltar para a Terceira Classe, mas Rabeca reapareceu...

— George... Fiquei muito curiosa com a história que me contou mais cedo. Pode me dar mais detalhes? Vamos ao vagão-restaurante, onde você poderá me contar mais. — disse ela.

Meu turno já havia acabado, e uma vez que ontem eu não me alimentei, achei conveniente aceitar o convite. Pois ainda estava com meu vale-refeição guardado.

Nós fomos ao restaurante, à algumas centenas de vagões atrás. O vagão era um belo restaurante. Sentamos em uma mesa ao lado da janela. Através dela, admirei a paisagem gelada por alguns segundos. O trem passava pelas montanhas cobertas de neve a centenas de graus abaixo de zero. Mesmo com a claridade da luz do sol, fora da arca de ferro a temperatura não se eleva a mais de cento e quinze graus negativos.

O garçom veio até nós com algo que parecia um tablet e nos pediu a confirmação de nossas classes. Rebeca colocou sua mão sobre o tablet e suas digitais a identificaram. Eu tentei fazer o mesmo, mas o tablet não reconheceu. Portanto entreguei meu vale- refeição.

— O mesmo de sempre, por favor! — Disse Rebeca ao garçom. Eu não sabia o que pedir, portanto disse ao garçom que queria o mesmo que ela. No entanto ele me respondeu:

— No seu vale, diz que você é apenas um jardineiro da Terceira Classe. Existem cardápios específicos para cada classe. Apenas lhe trarei seu respectivo prato.

Sem outra opção, concordei com ele. O garçom se retirou e depois de dez minutos, reapareceu com nossos pratos. Para Rebeca, trouxe um grande e fundo prato de salmão defumado, com um perfumado azeite puro de oliva, temperado com ervas frescas e finalizado com grãos recém colhidos. Além de uma taça de vinho francês. Para mim, trouxe uma marmita de papel alumínio apenas com um pouco de arroz frio, feijão cozido sem tempero algum e um ovo frito quase queimado.

Depois de observar os pratos, indaguei à Rebeca como é possível que exista vegetais frescos. Já que apenas conhecia as barras de proteínas que eram entregues ao fundo do trem.

— George... Esses legumes e vegetais, são cultivados nos vagões-horta. Assim como as frutas nos vagões-pomar, ou os animais no vagão-pecuário. A maioria dos funcionários da Terceira Classe sabem disso. Todos os agricultores são de lá. E o que são essas tais 'barras de proteína' que você tinha no fundo? Fale mais sobre ele.

Eu explique para ela toda a história dos quinhentos clandestinos. Como embarcamos sem passagem, como sobrevivemos por todos esses anos, como somos privados de tudo.

Meu raciocínio foi quebrado quando um detalhe me chamou atenção: uma faxineira estava limpando o chão perto de nós, mas ela parecia uma criança. Ela é uma criança! Alguns anos após a partida do trem, os guardas retiraram algumas crianças do último vagão. Aquela faxineira era uma delas. Crianças são uma mão de obra barata para os funcionários do trem. Por isso ela está aqui.

Enquanto processava o que vi, o chão sob meus pés começou a tremer! As xícaras e taças do restaurante tremiam cada vez com mais força. Todos entraram em pânico. Então uma voz ressoou no vagão, provinda dos alto falantes instalados em todo o trem:

"— atenção passageiros! O Frostcruiser acaba de ser atingido por um forte desmoronamento de neve! Não foram registrados grandes danos ao trem. Mas devido a uma falha no termômetro principal da locomotiva, não informaremos a temperatura externa até segunda ordem!"

A tenção passou depois de alguns minutos. Foi apenas um lembrete da fragilidade do trem.

Falei mais um pouco sobre o fundo trem enquanto jantávamos. Rebeca estava muito interessado no assunto. Mas outra surpresa nos aguardava. Ouvi um grito que ecoou no restaurante:

— Não creio no que meus olhos veem! Minha sobrinha na mesma mesa que um favelado? Foi para isso que vim aqui? — Era a senhora Martínez, que apareceu no vagão, escandalosa como sempre...

Ela tentou puxar Rebeca em um ato de indignação. Mas a faxineira que passara mais cedo deixou o chão levemente molhado. Devido a sua idade e ao piso úmido, a senhora Martínez caiu no chão junto com sua bolsa e bengala. Naturalmente, Rebeca e eu ajudamos ela a se levantar. Mas ela retrucou:

— afastem-se de mim! Cai por culpa de vocês!

Depois deste infortúnio, Rebeca achou melhor ir com a senhora Martínez para sua mansão na Primeira Classe. E eu voltei para a Terceira Classe.

No dia seguinte, fui para o jardim botânico como nos dias anteriores. Mas assim que cheguei lá, me deparei com algo imprevisível. Lá estava a senhora Martínez em prantos ao lado de um guarda. Quando ela me viu, apontou o dedo para mim e exclamou:

— Foi ele! Foi ele quem roubou meu colar! Quando cai no vagão-restaurante ontem, esse pilantra roubou meu colar!

Eu fiquei surpreso! Embora a senhora Martínez seja insuportável, eu jamais roubaria algo dela. O guarda ao lado dela exclamou:

— clandestino ingrato! Mesmo com toda a bondade do Sr. Nylton, você ainda faz isso conosco? Você pode ser expulso do trem por conta disso!

Julgado a expressãodo guarda, ele nunca ouviria a minha versão dos fatos. O guarda começou acorrer na minha direção. E eu, em reflexo, comecei a fugir pelas entranhas doExpresso. Me senti como se estivesse tentando embarcar de novo no trem!

Frostcruiser: - O Expresso Fim do MundoOnde histórias criam vida. Descubra agora