1- my baby shot me down.

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Faltavam exatamente duas semanas para o natal e Madrid estava em polvorosa. Cada canto da cidade exalava o clima benevolente daquele período, as ruas cintilavam enfeitadas e o frio chegava de mansinho alertando os madrilenhos do inverno. Eu particularmente gosto da época, é tudo tão bom e extremamente visual. As bochechas são rosadas e todos nas ruas trazem um semblante complacente no rosto e sacolas de compras nas mãos, cruzando as ruas iluminadas do meu amado Salamanca.

Vi tudo isso quando saí de casa no curto trajeto do apartamento até o ponto de táxi, porque ainda tenho a boa mania de caminhar quando desnecessário. Meu bairro é bonito, lotado de lojas, prédios e gente correndo. Um furor que muitas vezes me ajuda à ser deixada em paz já que aqui todos estão ocupados demais para olhar uns pros outros. Eu de botas pretas, jaqueta preta, calças pretas, gola rolê. Pulei no táxi com duas malas Prada de couro saffiano, e minutos depois estava assistindo as ruas correrem como um borrão confuso pela janela do enorme ônibus de viagem.

Eu estava partindo, da maneira mais discreta possível para uma viagem desafiadora. Sevilha não era longe. Sabia que não demoraria muitas horas até chegar lá e contava com isso para que eu não tivesse tempo suficiente de me arrepender no caminho. Afinal, estava indo ver meus pais.

Não que tivesse passado todos esses anos sem vê-los, mas essa seria a primeira vez desde que vim para Madrid que iria voltar lá. Estive por muito tempo adiando esse evento, mas depois de tudo o que aconteceu, senti que precisava passar por cima de todo o sentimento ruim e encarar de uma vez a volta para Camas. Arrumei as malas na surdina, avisei quem me importava em Madrid e parti, sem fazer alarde.

Estou agora acomodada na poltrona do ônibus, olho ao redor e percebo que está meio vazio, provavelmente porque Carrazco fez questão de comprar todos os assentos de metade do ônibus para garantir a minha segurança sem me avisar? Sábio empresário, um ótimo amigo. Relaxo com os fones enterrados nos ouvidos, tentando ignorar o celular vibrando à cada mensagem curiosa de Allice.

    Alligol the best:
    Você está bem? Sr.Hernandez tá choramingando de saudades.

   María:
   Duvido... Ele deve estar com fome, você lembra do horário da ração, não é?

    Alligol the best:
    Como eu ia esquecer? Você falou mil vezes desse gato.

    María:
    Ótimo, quando eu em casa chegar aviso você.

    Alligol the best:
    E você? Ainda não me disse se tá bem, acha que essa viagem foi uma boa idéia mesmo?

    María:
    Brasileira, quando eu chegar aviso você.

Desligo os dados móveis e volto apenas à ouvir minha música.

Allice é uma ótima amiga, carinhosa, dedicada e extrovertida. Foi ela quem começou sete anos atrás com o apelido de Marígol, me obrigando à chamá-la de Alligol. Era mais uma daquelas amizades nascidas do preceito de que "os opostos se atraem". Mas mesmo que nós sejamos próximas desde a adolescência, eu ainda evitava contar algumas coisas para ela, e Allice também não costumava insistir.

Após as cinco horas de viagem que passaram voando, chego à rodoviária Sevilla.

Não demoro por ali, saio e tomo um táxi na porta partindo rumo à Camas, para a última parte da viagem. Talvez a mais difícil, porque ir ao interior de Sevilha é como ir para outra Espanha. Um chuvisco suspeito começou logo que entrei no carro, e não demorou para que uma chuva torrencial passasse à chicotear o teto do pequeno carro prata. Agora eram por volta de cinco da tarde e o céu cinzento tempestuava o ambiente com rajadas de vento e trovões. A tormenta que desagua em Sevilha me trás nostalgia. Aquela mesma chuva melancólica e cheia de relâmpagos estava nas minhas lembranças mais bonitas e também nas mais dolorosas. Mas acima de tudo, significava uma coisa: Estou em aqui. Em meu ponto de partida.

Camas, Sevilla - a Sergio Ramos story.Onde histórias criam vida. Descubra agora