Crowley não conseguiu pregar o olho durante a noite toda. Ele tentou, durante toda a madrugada, entender os motivos que o fizeram instintivamente dar um beijo em seu vizinho. Não, ele não era mais, apenas seu vizinho, eles eram amigos agora. Crowley tentou entender porque, em sã consciência, ele beijou seu até então vizinho, recentemente ex-arqui-inimigo e atual amigo.
Ele nunca tinha ouvido falar em um beijo instintivo. Já tinha ouvido falar sobre a reação de luta ou fuga, quando a pessoa está em uma situação de ameaça ou perigo, mas seu caso parecia o completo oposto: ele conseguia entender como o corpo conseguiria se preparar para enfrentar ou correr em uma situação aterrorizante, mas desligar completamente em uma situação tão cotidiana quanto dormir? A sensação que ele tinha era de que sua consciência tinha realmente desligado naquele momento.
A ideia de que aquilo poderia custar sua amizade com Aziraphale só o fazia ficar mais nervoso. É claro que ele se explicaria pela manhã, mas ele também entenderia caso as desculpas não fossem aceitas – Aziraphale tinha todo o direito em não aceitá-las (até porque ele não fazia ideia de como se explicaria, já que não sabia como aquilo tinha acontecido).
Ele passou a madrugada inteira se virando na cama, às vezes abrindo os olhos lentamente para ver se Aziraphale estava dormindo ou se estava acordado, sentindo silenciosamente ódio de Crowley pelo incidente mais recente (a história deles era recheada de incidentes recentes, ele percebeu). Mas, diferentemente de Crowley, que não conseguia se acalmar o suficiente para dormir, Aziraphale parecia estar tendo a melhor noite de sono de sua vida.
Apenas muitas horas depois, com o sol já quase no horizonte, Crowley conseguiu dormir. Ele talvez tenha dormido por cinco minutos, talvez por uma hora (era realmente muito difícil marcar a passagem do tempo quando se estava tão cansado e ao mesmo tempo tão ansioso e agitado) até que um barulho vindo de fora do quarto o acordou. Virando na cama, ele percebeu que já era de manhã e Aziraphale já estava acordado. Não tinha mais para onde correr, ele pensou, levantando da cama e se dirigindo à sala.
– Bom dia! – Aziraphale respondeu alegremente enquanto misturava alguma espécie de massa em uma cumbuca.
– Bom dia. – Crowley respondeu baixinho, coçando a cabeça. – Aziraphale, eu gostaria de falar com você... – Ele disse, entrando na cozinha.
[Amor, meu grande amor; Não chegue na hora marcada. Assim como as canções, como as paixões e as palavras]
Crowley percebeu quando Aziraphale apoiou a cumbuca na mesa e se aproximou dele. Respirando fundo, ele juntou toda sua coragem para tentar se explicar – mesmo sem saber como se explicaria. Antes que pudesse falar, porém, Crowley sentiu um beijo ser gentilmente posicionado entre seus lábios entreabertos.
– O que você gostaria de dizer? – Aziraphale voltou sua atenção para a cumbuca na mesa, sorrindo.
Crowley não conseguia formular um único pensamento coeso. Ele sentia que tantas coisas tinham acontecido nos últimos dois dias que seu pobre cérebro não estava conseguindo acompanhar. Ainda parado no mesmo lugar, com os lábios ainda entreabertos, mas agora com as sobrancelhas levantadas e com um olhar perdido, ele não sabia muito bem por onde começar a desembrulhar toda aquela situação.
– Eu... Eu... – Ele limpou a garganta. – Eu queria falar sobre ontem. Eu sinto muito, e...
– Oh. – Aziraphale abaixou o olhar para o pote em suas mãos. – Tudo bem, eu entendo, acho que eu li a situação de maneira errada, me desculpe.
– Não! – Crowley gritou. – Não é isso, é que eu não pensei direito antes de agir e...
– Crowley, não tem problema. – Seus olhos permaneceram vidrados na massa de bolo.
– Aziraphale, não é isso que estou dizendo! – Crowley parecia cada vez mais exasperado, tendo noção de que escolhera todas as palavras erradas mas sem saber quais palavras seriam as corretas. – Eu não estou dizendo que eu não quis te beijar, eu estou dizendo que a maneira como eu tratei a situação foi impensada e inconsequente e você tem todo o direito de se sentir desconfortável ou bravo com o que aconteceu.
– Certo. – Aziraphale levantou o olhar para Crowley. – E você não acha que o beijo que aconteceu há cerca de um minuto não acaba com essa possibilidade de eu estar desconfortável ou bravo com o que aconteceu na noite anterior?
– Eu acho que sim. Talvez. – Crowley sentiu seus ombros ficarem mais leves. – Eu fiquei nervoso, tudo bem? Meu cérebro ainda não teve tempo de processar o beijo mais recente, vai me levar mais algumas horas.
[Me veja nos seus olhos; Na minha cara lavada. Me venha sem saber se sou fogo ou se sou água]
– Tudo bem, não vou te julgar. – Aziraphale gargalhou. – Você se importaria em preparar o café, por favor? Enquanto eu coloco o bolo para assar.
– Claro, sem problemas. – Crowley respirou aliviado. De todas as maneiras e versões que ele imaginou aquela conversa terminar, a única da qual ele não esperava era aquela que tinha acabado de acontecer. A que ele considerava a melhor possibilidade possível.
[Amor, meu grande amor; Me chegue assim, bem de repente. Sem nome ou sobrenome; Sem sentir o que não sente]
Crowley passou o café (que ficou fraco e doce demais, mas ele atribuiu esses erros ao fato de ele estar nervoso demais para pensar) e Aziraphale assou o bolo. Os dois sentaram para tomar café, embora já não fosse mais horário de café da manhã.
– Bem que eu deveria ter desconfiado que você não estava bravo quando percebi que você estava desfrutando de um sono milenar enquanto eu não conseguia pregar o olho a noite toda de preocupação. – Crowley riu, enfiando um pedaço do bolo na boca.
– Sendo muito honesto, eu não pensei muito sobre toda a situação, eu apenas dormi. – Aziraphale, que preferia chá, tomou um pequeno gole do café.
– Uau. Ok, bom saber que foi extremamente imemorável para você. – Crowley fingiu ressentimento.
– Não foi isso que eu quis dizer. Quis dizer que para mim tudo pareceu tão normal que eu sequer questionei.
– Na verdade eu também achei. Normal até demais, diga-se de passagem. Foi quase como instintivamente, e eu só percebi o que tinha acontecido um tempinho depois de ter acontecido. Mas eu já deveria saber das suas intenções há muito tempo. – Crowley tentou conter o sorriso.
– O que você quer dizer com isso?
– Por favor! "Você pode dormir aqui, mesmo sua casa sendo um andar abaixo. Não durma no sofá, nós dividimos a cama! Você se parece tanto com o décimo doutor de Doctor Who e ele é tão bonito!" – Crowley fez sua melhor imitação de Aziraphale.
– Eu não falei nada disso com "intenções"! Eu só estava sendo gentil! – Aziraphale riu, tentando esconder o rubor em seu rosto.
[E quando me quiser, que seja de qualquer maneira [...] Amor, meu grande amor, que eu seja o último e o primeiro; E quando eu te encontrar, meu grande amor, me reconheça]
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Good Omens - Entre Tapas e Beijos (Ineffable Husbands)
RomanceAU (alternative universe) - Em que Crowley, segurança de uma boate, resolve caçar briga com seu vizinho de cima pelo barulho de música alta às seis da manhã - ou em que Aziraphale resolve revidar a implicância de seu vizinho do andar de baixo.