Crowley observava cautelosamente Aziraphale mexer cerca de três panelas ao mesmo tempo, enquanto ele próprio demorava mais do que era considerado aceitável para cortar um simples tomate e uma singela cebola. Ele sabia que deveria ter se empenhado em aprender a cozinhar muitos anos antes, mas ele tentava ao máximo se enganar, fingindo que não fizera falta em sua vida.
E Aziraphale cozinhava com tanto cuidado que era capaz de sentir o carinho contido em cada gesto, desde o balançar da colher até a pitada de um tempero que Crowley não fazia ideia do que era. Absorto com a visão do amigo cozinhando, ele não percebeu quando a faca atingiu seu dedo indicador ao invés da cebola que deveria ser cortada no lugar. O transe de Aziraphale foi quebrado ao ouvir um resmungo desagradável vindo de seu vizinho.
– Tudo certo por aí? – Ele se virou para olhar Crowley, que levantou um dedo ensanguentado para ele, sorrindo constrangido. – Eu achei que você tinha dito que era confiável com facas!
– Não, eu nunca disse que era confiável, eu disse que dependia para quem você perguntasse... – Crowley apertou o dedo, trazendo mais sangue para a superfície do corte. – Para qualquer pessoa do mundo a resposta muito provavelmente seria "não", mas você perguntou para mim. – Ele deu de ombros.
– Então essa será nossa relação a partir de agora? – Aziraphale saiu da cozinha, retornando rapidamente com um kit de primeiros socorros que Crowley já estava muito familiarizado. – Você se machuca e eu trato o machucado? – Ele riu, colocando o kit próximo aos tomates picados e segurando o dedo de Crowley o mais próximo possível de seu rosto para examinar a gravidade do corte.
– Bom, não é bem a mesma coisa, não é? Na última vez você meio que tentou me matar e tudo mais.
– Ok, você venceu. – Aziraphale gargalhou. – O corte não me parece muito fundo, lave com água corrente e ficará tudo bem. Sabe, um truque quase infalível para não se cortar sem querer com uma faca de cozinha é: preste atenção no que você está fazendo. Você estava prestando atenção na faca?
– Talvez eu tenha me distraído, mas isso é algo que ninguém jamais será capaz de comprovar ou não. – Crowley brincou, embora o rubor em seu rosto o entregasse muito facilmente. – Eu acho legal te ver fazendo algo com tanto empenho e cuidado, é um pouco difícil não me distrair.
– Talvez eu nutra um entusiasmo tão estranho por culinária e literatura quanto você por plantas. – Aziraphale sorriu. – Eu gosto de saber que, ao combinar ingredientes que sozinhos não são nada especiais, nós podemos ter uma coisa completamente nova. Farinha, ovo e leite separadamente? Nada demais. Mas misturando os três, com um pouco de fermento você é capaz de fazer um bolo! – Ele volta para as panelas no fogo, abanando uma mão para dissipar suas últimas palavras. – Enfim, eu sempre acabo divagando sobre essas coisas.
– Eu não me importo. Em te ouvir falar, no caso.
A constatação, embora ele tentasse negar em seu subconsciente, acertou Aziraphale com uma força descomunal. Ele sempre soube que falava demais, e sempre ouviu de outras pessoas, mesmo que disfarçados como comentários inofensivos, que falava demais. Após uma certa quantidade de pessoas apontando uma característica sua como defeito, você mesmo passa a enxergá-la como tal, mesmo sem se dar conta.
Durante anos ele fez o máximo possível para nunca podar uma pessoa entusiasmada com um interesse, mas naquele instante ele percebeu que vinha fazendo se podando durante todo esse tempo. Porque era mais fácil se calar antes que alguém pudesse comentar algo sobre. Mas também era muito mais solitário. Ele sentiu sua garganta apertar, como normalmente acontecia em situações como aquela, mas resolveu que, pelo menos daquela vez, ele ignoraria a sensação de estar sendo inconveniente demais por estar compartilhando algo com alguém.
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Good Omens - Entre Tapas e Beijos (Ineffable Husbands)
RomansaAU (alternative universe) - Em que Crowley, segurança de uma boate, resolve caçar briga com seu vizinho de cima pelo barulho de música alta às seis da manhã - ou em que Aziraphale resolve revidar a implicância de seu vizinho do andar de baixo.