Capítulo 15: Terra de Gigantes - Engenheiros do Hawaii

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A floricultura era uma questão difícil para Crowley, mas não porque algo deu terrivelmente errado. Foi uma falência muito comum e bem rotineira: durante alguns anos tudo ia muito bem e as pessoas compravam quantidades consideráveis de plantas e dava para tocar a vida, mas depois de um tempo foi se tornando inviável. As vendas foram diminuindo pela concorrência, o aluguel do local foi aumentando e os lucros não conseguiram acompanhar... era uma história muito simples – grande parte das pessoas conhecia pelo menos um estabelecimento com o mesmo destino.

Não era como se ele tivesse incendiado o local com todas as plantas lá dentro e não fosse capaz de se recompor, como se ele tivesse queimado todas as suas economias... era só uma história básica de como ele precisou abrir mão do sonho de vida dele para trabalhar com algo que o trouxesse dinheiro suficiente para conseguir estabelecer a própria vida – e foi o que ele fez. Com certeza para outras pessoas uma floricultura fracassada seria apenas um capítulo que terminou mal no grande livro da vida, mas para ele não era assim.

[Hey mãe, eu tenho uma guitarra elétrica. Durante muito tempo isso foi só o que eu queria ter.]

Ele sentia que continuava ali. Sempre que passava próximo ao prédio que antes era seu local de trabalho (e atualmente era um pet shop) Crowley conseguia lembrar do barulho que o molho de chaves fazia enquanto ele abria a porta, em como sempre trazia consigo uma caixa ou outra com plantas que passaram um tempo em seu apartamento, que ele considerava como uma "unidade de tratamento intensiva para a flora". E ele lembrava, acima de tudo, do quanto falhara.

Para ele, era como se nenhum capítulo da sua vida tivesse sido escrito desde então. Como se o autor (fosse ele o universo, alguma entidade superior ou até mesmo ele próprio) tivesse se entediado com a história, abandonando o livro completamente. E ele continuava ali, preso naquelas páginas. O dia que resolveu fechar a floricultura antes que não fosse capaz de arcar com os prejuízos.

Se precisasse colocar em palavras – coisa que ele nunca chegou a pensar em nove anos, mas agora pensava quase diariamente – a sensação era como estar congelado. Crowley sentia que o dia em que ele devolveu as chaves da porta principal para o dono do imóvel foi também o dia em que ele entrou em um globo de neve. Como se sua vida a partir daquele momento fosse puramente decorativa. Um globo de neve esquecido em uma estante na casa do "Grande Esquema das Coisas". Um globo de neve que não era sequer chacoalhado – e qual a utilidade de um globo de neve se ele não for chacoalhado?

[Mas hey, mãe, alguma coisa ficou para trás. Antigamente eu sabia exatamente o que fazer]

A decisão de procurar outro emprego não foi difícil em um sentido racional, mas foi emocionalmente excruciante. Ele precisava de dinheiro, existia um trabalho que pagava relativamente bem para tarefas que ele era relativamente bom – intimidar pessoas para que elas não fizessem nada de errado, não importunassem outras pessoas ou não depredassem a boate. Para Crowley, era um trabalho simples (mas também era um trabalho insuportavelmente solitário).

Porque a coisa que ele mais amava em trabalhar na floricultura era escutar os motivos que fizeram aquelas pessoas aleatórias entrarem em uma floricultura naquele dia específico. Às vezes alguém procurava uma maneira de dizer o quanto amava um outro alguém, ou parabenizar pela graduação em uma faculdade prestigiada, ou precisava de um jeito de pedir desculpas para alguém que era muito importante... Cada cliente tinha uma história, e ele amava ouvir todas elas.

As plantas, e ele sabia melhor do que ninguém, tinham uma maneira muito única de expressar sentimentos, fossem eles alegres, tristes, amorosos... Essa era a melhor parte do trabalho: analisar a situação passada pelo cliente, que despejava seus sentimentos naquele balcão de atendimento, e dar o melhor para encontrar uma planta que fosse capaz aquela história sem a necessidade de palavras melodramáticas.

[Mas agora lá fora, todo mundo é uma ilha. Há milhas e milhas e milhas de qualquer lugar]

Na boate, ele era pago para fazer o oposto. Não havia amor no trabalho que ele exercia, mas as coisas iam bem. Às vezes ele pensava, ao chegar em casa às cinco da manhã depois do expediente, se esse tinha sido o problema com a floricultura: ele ter amado demais. Era o tipo de realização que o fazia querer gritar a plenos pulmões até ficar rouco e nunca mais precisar verbalizar nada. A ideia de que seu amor era capaz de destruir tudo que tocasse.

É claro que ele não conseguia acreditar nisso completamente, porque sabia que amava Newt e Anathema e não estragou a amizade que tinha entre eles, mas também não era capaz de pensar que talvez os amigos fossem a exceção – tirando os dois, tudo que Crowley amou deu errado, e tudo que ele construiu sem paixão prosperou: ele era, indiscutivelmente, um dos melhores funcionários da boate (e meu Deus, como ele odiava aquele emprego).

Não, não era ódio. Ele era incapaz de odiar o trabalho que conseguiu dar estabilidade suficiente para que ele conseguisse recuperar o dinheiro perdido com a floricultura, quitar o apartamento que hoje chamava de casa, dar o mínimo de conforto possível para que ele vivesse seus dias... Não odiava o trabalho, mas sim a maneira como ele se sentia todos os dias. Vazio. Sozinho. Congelado.

[Mas hey, hey mãe, por mais que a gente cresça, há sempre alguma coisa que a gente não consegue entender]

Ele nunca precisou falar sobre isso com Anathema e Newt porque os dois estiveram ao lado dele durante esse período – e Crowley sabia o quão sortudo era por ter tido todo o apoio imaginável – e também não saberia como expressar como se sentia, nem se precisasse. Nem se sua vida dependesse disso. Ele sentia que, ao fechar a floricultura, ele simultaneamente abriu sua própria caixa de Pandora: todas as desgraças de seu próprio mundo tinham sido liberadas, e ele precisava conviver diariamente com elas.

[Por isso mãe, só me acorda quando o sol tiver se posto. Eu não quero ver meu rosto antes de anoitecer]

O amargor familiar voltou à sua boca, como sempre voltava quando pensava naquela época. Não era muito agradável pensar em seus fracassos, ainda mais com a devastadora possibilidade de que era seu amor que fazia com que as coisas desandassem. Como se seu carinho e preocupação fossem algo venenoso, que matava tudo que Crowley ousasse tocar. Ele riu fraco com esse pensamento, imaginando o quanto isso influenciava a antipatia considerada pelas pessoas ao seu redor como algo quase natural e inato dele mesmo.

Às vezes ele imaginava como seria o filme de sua vida caso todo o negócio de juízo final fosse realmente verdade. A ideia de outras pessoas assistindo todos os seus anos desperdiçados causava náuseas fortes o suficiente para tirar algumas noites de sono. Crowley sabia que isso não era um sentimento saudável ou muito menos comum, mas não era algo que estava sob seu controle: os pensamentos sempre vinham, e sempre se transformavam em grandes espirais.

Abrindo a porta de casa, ele se esparramou pelo chão em frente ao sofá. Tinha sido um dia exaustivo no trabalho, e os pensamentos que vinham invadindo sua mente nas últimas horas causavam um cansaço ainda maior – uma combinação de esgotamento físico e mental. Seus olhos foram fechando aos poucos, convictos de que ele seria capaz de pegar no sono ali mesmo, estirado no chão, até escutar uma música vinda do andar de cima. O volume estava muito mais baixo do que costumava ser – tão baixo a ponto de não incomodar mais Crowley.

– Aziraphale, nós somos amigos. – Ele murmurou sonolento. – Vamos manter assim, certo? Não aumente esse volume. Nós podemos encontrar um meio termo, não preciso que seja tudo preto no branco... Podemos nos acertar em... Tons de cinza. – Ouvindo apenas um leve ruído ao fundo, baixo o suficiente para que ele não conseguisse sequer distinguir qual era a música, Crowley adormeceu no chão.

Good Omens - Entre Tapas e Beijos (Ineffable Husbands)Onde histórias criam vida. Descubra agora