16 - viva em um mundo morto

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A claridade da janela à minha frente me faz abrir os olhos com dificuldade, a luz entrando diretamente em meus olhos sensíveis, e eu coloco a mão na frente dos olhos, tampando a luz do sol. Eu olho em volta, posso ver que estou em algum tipo de celeiro, e então me sento no sofá com dificuldade. Encaro minha perna, e posso ver a gase enrolada e fechada em meu mais novo machucado. Suspiro, a dor não é tão grande como antes, mas ela permanece ali, me fazendo gemer de dor a cada movimento.

— droga... — eu abaixo a cabeça, sei que não vou conseguir andar sem apoio, ou pelo menos, sem sentir uma dor insuportável. Procuro Daryl com o olhar, mas tudo que vejo são palhas espalhadas pelo chão, paredes de madeira e o alguns colchões pelo chão com mantas espalhadas.

— vamos passar mais uma noite aqui, não acho que ela consiga andar, vou ver isso com ela quando ela acordar, acho que ela vai saber como tratar. — eu escuto a voz de Daryl, e logo em seguida o chiado de um walkie-talkie, usei tanto este tipo de aparelho que reconheceria aquele chiado de qualquer lugar. Eu olho por todo quanto, procurando de onde veio a voz de Daryl. Eu coloco as costas da mão sobre a minha própria testa, vendo se estou com febre. O suor me incomoda, mas eu não estou com febre, e isso é um bom sinal
— tudo bem. Nós estamos em uma igreja no leste, te mando as coordenadas depois. — a pessoa do outro lado do walkie-talkie responde, aposto ser Rick. Eu me reencosto no sofá velho e rasgado quando escuto passos.
— ah, finalmente... — Daryl se aproxima de mim e se agacha, colocando a mão em minha testa, tentando ver minha temperatura.
— não estou com febre, já chequei isso. — eu digo, e ele assente, pega uma cadeira do lado da porta e a coloca na frente do sofá, se sentando de frente para mim.
— está tudo bem? — ele pergunta, e eu sorrio dolorosamente.

— eu poderia ter perdido minha perna e estou sentada em cima de um sofá que é inteiro da cor que eu mais odeio, mas tudo bem, ainda estou viva. — eu encaro a minha própria perna. Tem algumas gases envolvidas em minha perna e presas com algum tipo de fita, mas essas gases não vão durar por muito tempo, estão começando a ficar sujas de sangue e não estão mantendo o ferimento arejado. O sofá velho e rasgado é inteiro rosa, um rosa feio e meio amarelado. — As gases eram pro seu braço, não deveria ter... — pode não fazer muito sentido, e não faz sentido para mim também, mas minha preocupação com o braço de Daryl parece um pouco maior. Daryl já fez tanto por mim... E quando finalmente posso retribuir, sou pega por uma maldita armadilha de urso.

— não. — Daryl me interrompe. — Você precisava mais do que eu, e eu posso encontrar mais. — eu apenas assinto com a cabeça, ele pega minha perna com cuidado, mas mesmo assim, ela arde, e eu solto um resmungo dos lábios, e Daryl me encara, mas eu assinto e ele coloca a minha perna sobre sua coxa, desenrolando a gase.
— eu limpei com água oxigenada. — Daryl me encara, enquanto continua desenrolando a gase, procurando aprovação.

— sim, você fez certo. — respondo, e ele volta a encarar minha perna. Eu o encaro, consigo me lembrar do que disse quando achei que já era tarde demais, mais uma vez, sei o que falei, sei o que não deveria ter falado, e agora, o medo de Daryl se afastar me assusta, por algum motivo, e eu suspiro antes de dizer. — Obrigado, Daryl. — isso é tudo o que eu consigo dizer, enquanto encaro-o trocando o corativo do meu ferimento.

O que é tudo isso? Minha irmã saberia me dizer, mesmo que eu tenha certeza do que ela iria dizer e da forma que eu iria reagir. Daryl é um amigo. Daryl é a pessoa que me tira de uma armadilha de urso coberta por sangue e de um hospital cheio de babacas. Deveria ser só isso, não? Acho que não preciso da minha irmã para a afirmação que minha mente deixa clara para mim.

— não precisa me agradecer. — ele responde. Curto e seco. Poucas palavras. O Daryl de antes, ele voltou, e eu sinto como se a culpa fosse minha, quer dizer, eu sei que isso foi minha culpa, não deveria ter falado nada, não deveria sentir nem ao menos que existe a possibilidade de existir algo a mais. Daryl é o oposto de tudo que eu sou, não faria sentido, não poderia fazer sentido

— Você não precisava dizer aquilo para me fazer te ajudar, eu... Eu iria te ajudar de qualquer forma, não precisava dizer... — Daryl diz, passando um algodão com água oxigenada em volta do machucado enquanto dá de ombros sem terminar sua frase, e eu resmungo de dor de novo.

— eu não disse aquilo pra te fazer me proteger, Daryl. — eu respondo, tentando parecer diferente, mais fria, talvez? Eu não sei, e solto um gemido de dor no final da frase, e ele me encara, eu posso ver os olhos azuis que tinham voltado a serem rígidos, ficando como um oceano calmo e encantador de uma praia no Havaí, e assim que ele desvia o olhar, sinto vontade de sorrir, por algum motivo desconhecido. Ele pega uma gase limpa, e a enrola em minha perna.

— você seria bom para um enfermeiro. — eu digo e posso ouvi-lo zombar com um som baixo saindo da boca, e ele volta minha perna para o lugar de antes, com cuidado. Ele se levanta e eu me inclino para frente, observando-o.
— qual era o nome dele? — Daryl pergunta, limpando as mãos em um pano. Eu franzo o cenho enquanto observo o que ele faz, não sei de quem ele está falando. — Do garoto, aquele que você gostava. — ele explica, e eu suspiro. Não gosto de falar sobre isso, foi mais uma coisa colocada sobre meus ombros como minha culpa. — Não precisa me dizer se não quiser, você sabe. — ele dá de ombros.

— John. — eu respondo, e Daryl se vira para mim, se apoiando com as costas em uma das pilastras de madeira que seguram o celeiro onde estamos. — Jonathan Fingher. — eu completo, pensando se deveria dizer isso para Daryl. — Ele... Era simples, divertido... — eu me reencosto no sofá enquanto encaro Daryl. — Eu gostava dele. De verdade. — E mesmo que eu tenha passado esse último mês me forçando a não acreditar, eu sei que sinto algo por Daryl, mesmo que tenha medo de afastá-lo se disser, eu não posso evitar de sentir o reviro no estômago quando Daryl me encara. Os olhos azuis. O oceano de silêncio. — Mas eu não disse. — Eu dou de ombros. — Eu só disse quando ele... Você sabe. — eu digo, e Daryl encara o chão, se aproximando de novo, e se senta na cadeira de antes, em minha frente.
— o que aconteceu com ele? — Daryl pergunta. Talvez seja disso que eu preciso, talvez eu só precise dizer tudo o que guardei para mim mesma desde que o mundo se virou de cabeça para baixo.

— ele... — eu suspiro, a culpa voltando a pesar em minhas costas. — Eu e minha irmã estávamos saindo da cidade, ela bateu o carro, e ele nos encontrou, nos ajudou. Mas quando... Quando chegamos em uma casa, achávamos que não tinha ninguém, mas eu subi em um dos quartos e... Eu quase morri, ele me salvou, e... Foi mordido. — Eu digo, me forçando a esquecer a dor em minha perna que volta como pontadas. — Ele morreu, por minha causa, morreu por uma estupidez minha, por uma falha... Minha falha. — eu dou de ombros mais uma vez, não sei como me sinto agora, mas sinto as lágrimas voltando, mas elas não descem, como sempre.
— isso não foi sua culpa. — Daryl me encara. Os olhos azuis e os olhos castanhos. Ele também se sente culpado, eu não sei pelo que, mas sei que ele sente, e isso está nos olhos dele. — Me desculpe por deixar isso acontecer com você. — Daryl diz, apontando para minha perna, e agora eu sei pelo que ele se culpa, além de todo o resto.

— o que aconteceu com o John, foi culpa minha, não tive atenção, e o que aconteceu comigo... — eu aponto para minha própria perna. — Também foi minha culpa, Daryl, não sua. Eu não tive atenção, de novo. — eu digo, não consigo não encarar os olhos dele. O azul me trazendo conforto, me fazendo se sentir melhor, mesmo que a dor continue ali.
— não, eu deveria ter desarmado todas elas antes. — ele diz, encostando as costas na cadeira.

— como você saberia que eu me machucaria? Isso não é sua culpa. — eu digo, e toco em seu braço, tentando tranquiliza-lo. A forma que a pele dele é quente me reconforta, na verdade, eu acho que tudo que envolve Daryl me conforta. — Não foi você quem armou as armadilhas, então, não foi sua culpa. E bom... — eu sorrio. — Poderíamos mudar de assunto? Eu estou com fome. — Daryl dá um meio sorriso, se levantando e voltando para o lado de fora. Eu encaro o teto de madeira, como sempre, pensando. Não sei como penso na possibilidade de sentir algo por Daryl. Não sei como sinto.
Ele é o oposto de John, exceto por três simples coisas. A coragem, a bondade, e de algum jeito, conseguiram me fazer sentir viva, mesmo em um mundo morto.

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Sempre vou lembrar vocês de que isso é uma história fictícia, não significa que tudo que um dos personagens suportam em qualquer ferimento seja suportado por uma pessoa real em um ferimento real.

Blue Letter - Daryl Dixon Onde histórias criam vida. Descubra agora