CAPÍTULO 3 - BILL (NORTE)

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De alguma forma, reajo aos golpes recebidos no passado. Receio ter escolhido o modo errado. Foi mesmo uma escolha? Se enxergo um vazio escuro e acusador dentro de mim, poderia ter sido eu o causador de minhas próprias dores. Pedaços de mim se foram naquele momento de fumaça, fogo, estilhaços e luzes. Me perco dentro do próprio esquecimento. Talvez eu nunca queira realmente esquecer. Só o passado dirá...   


O submundo que sobrevive para o mundo viver; os habitantes da escuridão que geram filhos da injustiça. Estando eu bem no meio de toda essa questão de certo e errado, sobrevivo do meu jeito.

Com risadas sutis, zombo da minha própria reflexão poética. Fala sério! Isso não combina com um garoto mercenário do subúrbio da Província Norte. Por ser alto e rápido, fui recrutado como coletador. Esqueci de citar: loiro, "afiladinho" e de notável presença, pelo menos foi isso o que disseram meus mentores. Sinto-me desconfortável com essa parte da minha vida. O que tem de mais levar alguns jovens para o trabalho no submundo? 

A sociedade abaixo de nós tem suas vantagens. Essas pessoas não são escravas; são muito bem tratadas, afinal. Minha missão é simples: levar aos trabalhadores da usina jovens como eu — andarilhos órfãos sem um rumo definido. Molezinha! Fácil como escapar pelo tubo¹. Na verdade, o trabalho tem sido mais fácil do que imaginei. Bastam apenas algumas promessas de bebidas clandestinas à vontade, festas ilegais em zonas da primeira classe, e eles estão no papo. 

Com algumas gargalhadas e histórias fantasiosas da primeira classe, eu me enturmo facilmente entre as vítimas selecionadas. Preciso ser o mais amigável possível, pois a cicatriz na minha testa cortando uma sobrancelha não é muito convidativa. O que mais resta para os renegados além de curtir as sobras do mundo sobrevivente?

Para que a Província Norte, a mais populosa do planeta, continue sobrevivendo, alguns precisam trabalhar duro no mundo subterrâneo. Assim se configura nossa sociedade: primeira, segunda e terceira classe se dividem em áreas diferentes na superfície sob contaminação química em processo de estabilização. Abaixo deles, outra sociedade formada por criminosos, condenados, desempregados e muitos inúteis para a humanidade. Eles se aglomeram nas usinas que sugam grande parte dos gases venenosos.


Um emaranhado de tubos metálicos percorre o subterrâneo e despeja os resíduos na zona morta, garantindo o máximo possível de ar puro para os habitantes das cidades. O mundo de baixo suporta uma vida resumida à pouca iluminação, sujeira, suor, lágrimas, graxa, fumaça e outros ingredientes. Eu deveria estar neste lado obscuro da Província. 

Sou merecedor dessa zona acabada. Meus longos e fortes braços alcançariam facilmente qualquer válvula escondida entre o aglomerado de tubos. Esforço-me para não lamentar minha escolha. Juro que isso é mais difícil do que eu imaginava. Pois é, em um passado desconhecido, fui um garoto mais ou menos gente boa, isso nos meus sonhos loucos.

Minha mãe e eu vivíamos à beira da expulsão para o subterrâneo. Trabalhadora das purificadoras de alimentos, ela mal sustentava nós dois e pagava os impostos para manutenção das usinas. Depois da forte resistência dela para com meus recrutadores, decidi fugir. 

A mulher não tem ideia do que faço, mas não posso, em hipótese alguma, ter contato com ela. Num mundo apoiado em injustiça, ninguém pode me julgar. Eu não abandonei minha mãe, apenas ofereci a ela uma chance maior de permanecer na superfície. De qualquer maneira, ela nunca mais me chamaria de filho se soubesse o que estou fazendo. 

Nossa esperança maior tornou-se a mais desprezada. Fazemos isso para seguir viagem com um peso a menos. É aceitar para doer menos. Ninguém jamais chegará ao final do Maps, abrindo a porta para o Eldorado. Resta-nos invejar e protestar a vida reluzente da Terra Oeste: sem contaminação alguma. 

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