CAPÍTULO 2 - NIARA (SUL)

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Correndo entre moitas sob o céu estrelado. Salvando e torcendo para não terminar esmagada. Preservando os marfins nos seus devidos lugares. Ser morta por aquilo que liberei — uma indecifrável ironia que pairava sobre mim. No calor do momento: tiros, gritos, passos, motores e sons selvagens. Já não tinha certeza se eu mesma havia me tornado a presa.

 Acordo assustada, mas não surpresa. Suando por todos os lugares possíveis, levanto-me do colchão encardido com o coração palpitante ao lembrar que estou mais desprotegida do que qualquer um da Província Sul.

Ponho imediatamente a máscara de proteção e os óculos, antes de me dar ao luxo de fazer uma única e grosseira trança nos meus longos cabelos pretos. Espero não ter sido contaminada durante o cochilo. Ainda não há sinais de infestação nas paredes. Analiso meus braços e pernas. Muita ousadia minha usar camiseta cinza em pleno clima frio. A mancha vermelha do meu ombro direito é apenas uma marca adquirida em tempos turbulentos de um passado vago. Ela resiste ao tempo na minha pele negra.

Se eu pudesse enxergar o pior inimigo do Sul, já tinha o socado bastante. Não restaria nada dele. No entanto, de forma covarde, ele resolveu se camuflar. Apenas enxergamos seus cruéis efeitos. O que chamamos de "Vermelho" espalha-se rapidamente através do ar: uma resistente espécie de bactéria devoradora de tecidos. Manchas avermelhadas doloridas são os sinais do primeiro estágio da contaminação, até que o infectado, aos poucos, perde os movimentos do corpo. No último estágio, órgãos importantes como rins e pulmões são obstruídos.

O pesadelo especialmente reservado para o Sul. Todas as medidas de contenção e prevenção parecem ser poucas para o avanço desse inimigo que já tirou milhares de vidas. Não me resta mais nada além de me expor ao perigo, já que estou sendo perseguida. Desde que me entendo por gente, vivo sozinha, pulando entre moradias  conjuntas mantidas friamente pelos impostos da Província Sul. Não tive muito do que me desapegar ao iniciar essa fuga.

Bastaram alguns testes camuflados sob consultas rotineiras e uma tentativa de participar da eliminatória no ano passado. Numa certa noite, oficiais da Província entraram de forma violenta no aglomerado de casas. Não era uma visita de patrulha. Procuravam-me em cada brecha. Gritos de que uma rebelde antiprovíncia, praticante de sabotagens, estava escondida ali. As memórias de fugas sem sentido foram essenciais naquele momento.

Hoje é mais um capítulo desta jornada. O sexto andar de um prédio abandonado parece ser apenas um refúgio para uma fugitiva como eu, mas representa uma peça de um quebra-cabeça, e essa cabeça é a minha. 

Por sorte, trouxe tinta suficiente para deixar a marca — um detalhe dos meus sonhos esquisitos. Alguns são horríveis e enigmáticos pesadelos. Sinto algo familiar nestas imagens que vêm como nuvens passageiras. Tento alcançá-las para que nunca desapareçam, principalmente a minha preferida: rochas gigantes, pôr do sol tocando minha pele negra, limite, protegidos. 

Meus sonhos não passam de palavras vagas jogadas ao vento e imagens distorcidas Guardo bem no cantinho da minha mente um doentio prazer ao me deparar com imagens de pessoas sendo capturadas por armadilhas, sabotagens e explosões em acampamentos, etc. Se eu me sinto culpada por ter feito algo de ruim? Até hoje não me veio esse sentimento...Ainda existe essa figura estranha, frequente na memória. 

Não vou permitir que o tempo se encarregue de eliminá-la, por isso começo com a parte mais difícil ao desenhar o escudo vermelho com detalhes em branco e preto. Um dos meus sonhos transformados numa imagem: Lanças brancas (minha parte favorita) se cruzam atrás do escudo. As cores vermelha e verde em forma de faixas tentam se esconder como um pano de fundo. Tenho certeza de que já vi essa imagem no Maps. Para mim, é um jogo fora do alcance de qualquer um, sem sentido, mas já não consigo controlar a vontade de participar. Nada me tira da cabeça que esta imagem apareceu no evento do ano passado.

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