Independência ou Morte?

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Era sexta-feira e eu sentia um cansaço descomunal. Essa última semana foi intensa no hospital, muita demanda e para completar eu estava gastando toda a minha energia para evitar Valentina, apesar de nos vermos sempre já que éramos do mesmo grupo. Eu não fazia ideia até quando eu iria conseguir fazer isso. Apesar de tudo, eu sentia falta dela, mesmo sabendo que dividíamos o mesmo espaço. Eu estava com medo que ela confundisse as coisas entre a gente é alimentasse um sentimento que seria inviável. Eu dizia para mim mesma que eu estava fazendo o melhor por nós duas. Era 7 de setembro, dia da independência, e ir ao hospital era facultativo para nós internos. Pela manhã, haveria o desfile cívico, o qual eu não iria. Aproveitei para acordar mais tarde, me jogar na cama e ficar lá sem previsão de saída. Lembro da minha mãe sempre me aconselhando, dizendo que a preguiça era um mal. Deus me livre, mas a preguiça era o único pecado que eu não lutava contra. Ela evita que outros pecados apareçam. Já faziam alguns dias que eu não dançava e isso me deixava exageradamente triste, estressada. Meu celular vibrou e eu imaginei que seria ela, uma de suas mensagens de bom dia. Me estiquei na cama trazendo o lençol para cobrir meu rosto.

- LU.

Era ela batendo na minha porta. Naquele momento a odiei com todas as minhas forças. Não respondi e ela continuou chamando, percebi que ela não iria parar então eu tive que responder. Dei permissão e ela entrou.

- Vamos sair. Eu vim te buscar.

- Eu não vou levantar.

- O dia tá lindo, vamos, Lu.

- Para de me chamar assim, por favor - ela não disse nada e ficamos em silêncio algum tempo - você me mandou mensagem agora a pouco?

- Não - se não era ela, então quem era?

- Você pode por favor pegar esse celular em cima da estante? - ela pegou e gentilmente me entregou. A mensagem era de Bruno.

"Vamos tomar aquele guaraná? Estou com saudades da sua companhia."

- Valentina, você pode me deixar no guaraná da Kelly? O Bruno tá me esperando.

- Sim, eu posso - ela confirmou sem tirar os olhos de mim. Talvez ela já tivesse entendido a situação. Deixei-a na companhia de meus lençóis e fui para o banho. Pouco tempo depois eu já estava quase pronta quando a vi se perder admirando a minha janela. A princípio estranhei, até me aproximar e ver o que ela via. O jardim tinha despertado, era chegada a hora da primavera. A rua das flores estava inundada de beleza e cor, e como sempre eu não havia prestado atenção nesse detalhe.

- Sempre amei essa rua - ela me confessou em um sussurrar - A vida é muito bonita, Lu.. Luiza.

Respirei fundo e jurei não dizer nada grosseiro diante de tanta beleza pairando o outro lado da janela. Ouvi uma música vindo baixinho do celular dela. Eram daquelas que ela sempre costumava ouvir. Não consegui ficar calada.

- Por quê você gosta tanto dessas músicas tristes? Você é até extrovertida, não faz muito seu estilo.

- Tem coisas, menina, que você nunca vai entender - ela tinha se virado fixando o olhar em mim antes de sair.

Estávamos só nós dois no guaraná. Bruno era fielmente ligado à Igreja, sendo um dos principais missionários da congregação. Ele tocava violão. Eu havia visto uma vez na ala oncológica quando ele tocou para as crianças e dava para perceber que ele fazia aquilo com maestria. Conversávamos pouco, pois ele era tímido, e o sol da tarde se fazia presente ali. Eu e Bruno resolvemos ir assistir a programação que haveria sobre a independência no hospital. A programação estava confirmada para as 15 horas, e eu já tinha chegado às 13h. Ao longe percebi que ela também estava ali, na companhia de Leandro. Ela o ajudava a segurar uma pilha de papéis, e usava óculos escuros. Queria tanto que pelo menos hoje ela não insistisse em conversar comigo. Percebi que ela me viu, mas não fez nada para se aproximar.

- Luiza, eu vou ter que ir embora. Minha mãe tá precisando de mim em casa e depois eu vou pro culto da minha igreja. Foi bom encontrar você, até outro dia - disse Bruno.

Sentei sozinha no meio de muitas cadeiras vazias. Peguei meu fone de ouvido e deixei reproduzir faixas aleatórias, escorei minha cabeça no apoio da cadeira e fechei os olhos. A música se estendeu, as batidas correram, o piano fez sua maestria abrindo as portas dos céus. Quando dei por mim, minha cabeça deslizou de repente da cadeira e sorri quando vi que havia cochilado ali mesmo. Estava cada vez mais idosa em um corpo jovem. Olhei para os lados e não a vi mais, ela deveria ter ido embora. Fui até o banheiro para lavar meu rosto e espantar o sono de mim, ao entrar me deparei com ela se encarando no espelho. Tomei um
susto em vê-la tão séria. Me aproximei da pia, lavando minhas mãos em silêncio. Continuamos assim.

- Eu já entendi qual é a sua, Luiza.

- Que? - esperei por sua confirmação, espantada. Eu estava tão lesada do sono.

- Você... - o irmão dela tinha surgido à porta procurando por ela. Os olhos esmeralda não traziam mais o seu brilho recorrente, ao invés disso, eu poderia jurar que tudo se resumia em exasperação, repulsa.

- Vamos, Teco, tô com pressa - Leandro recorreu novamente às mesmas palavras.

- Te vejo mais tarde, Dra. Luiza.

- Tá bom então.

Rapidamente senti aceleração correndo em mim, mas substituí a sensação. Eu não tinha feito absolutamente nada, não tinha o que temer.

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