O dia surgiu no horizonte. Segui o conselho que ela me deu e deixei toda a culpa me atingir de uma só vez assim que abri meus olhos. Era insano me concentrar em qualquer coisa e nesse sentimento se toda vez que meus olhos se fechavam, eu podia sentir o rosto dela se aproximando, podia sentir o cheiro dela. Eu estava enlouquecendo.
- Melhorou?
- De que? - respondi ao meu pai de imediato enquanto colocava meu café.
- Não ia tomar remédio e ir dormir ontem?
- Ah é, tô legal.
- Dormiu bem?
- Muito, como um bebê - disse sorrindo.
- Tá sorrindo de que?
- A vida é bonita, pai.
Ele coçou a cabeça e ficou me encarando. Limpei a cozinha e ele foi me deixar no hospital. Eu nao estava me sentindo em mim mesma, imaginei mil formas de me comportar e nao sabia como iria agir. Entrei no hospital como na primeira vez, subindo os degraus com desconforto. E lá estava ela, sentada no banco do pátio que costumava sentar, ao lado de Duda, que estava incrivelmente cedo no hospital para deixar as minhas coisas. Ela estava com a mão no queixo e uma cara de tédio. Quando Valentina me viu, deixou um sorriso abrir e veio até meu encontro, me dando um abraço.
- Minha blusa ficou seu cheiro inteiro - ela sussurrou perto do meu ouvido. Olhei pra Duda e ela continuava com cara de tédio, mas me fixava com o olhar. Larguei do abraço de Valentina e me sentei com elas no banco.
- Eu sou tua amiga e não ganho abraço - minha orelha esquentou. Ela tinha a língua bem apurada. Queria jogar minha bolsa na cara dela, mas não podia pois ainda estava em sua posse. Ela estendeu o braço e devolveu as minhas coisas - Como foi o eclipse ontem?
- Normal, o sol ficou bem pouquinho escuro e acabou.
- Tiraram fotos?
- Não.
- Sim - Valentina me interrompeu pegando o celular para desbloquear. Ela deu o aparelho para ela e a cara estática de Duda não mudava nunca.
- Que casal da porra - revirei os olhos. Fiquei com mais vontade ainda de tacar a bolsa nela.
- Eduarda, você é muito inconveniente.
- Valentina, como você aguenta essa menina? Oh coisinha chata.
- Ela é maravilhosa - seu olhos vieram de encontro ao meu e eu não consegui manter o contato visual. Olhei para Duda, que fazia uma careta.
- Meus pais querem fazer um jantar lá em casa pra comemorar meu aniversário semana que vem. Quero que as duas estejam. Você também pode levar o Roger e a Carol, Luiza.
- Não brinca que você é libriana - Valentina abriu os olhos com um brilho incomum.
- Infelizmente.
- Eu também sou - falei em um impulso.
- Você é de que dia?
- Dia 5.
- Eu sou do dia 29 desse mês... - ela suspirou - o signo das dúvidas. - comentou, oscilando seu olhar entre eu e Eduarda.
- Gente, sério. Vão pro banheiro, se peguem, transem, sei lá. Tô com paciência pra essa tensão sexual entre vocês gritando essas horas da manhã não.
- Tem como você controlar os seus comentários, Eduarda?
Sentei despojadamente no banco e ignorei Eduarda. Pouco tempo depois senti a mão de Valentina grudando na minha e me puxando. Olhei para Duda, e lá estava aquele olhar sínico com um meio sorriso. Ela estava me guiando rumo ao vestiário e todo o hospital estava vendo indo de mãos dadas com ela até lá. Ao chegarmos na porta, ela soltou a minha mão e foi até a pia. Olhou para o espelho e arrumou seus cabelos que até então estavam soltos.
- Relaxa, Lu. A Eduarda gosta de implicar com você porque sabe que você se encabula rápido.
- Eu me encabulo? Você não escuta os comentários dela?
- Acho que ela faz isso porque gosta de você, quer, talvez, que você se permita mais - nós estávamos sozinhas ali e eu já começava a ficar nervosa - escuta, sobre ontem... - recebi a atenção dela pelo olhar no espelho e aquele me penetrou de uma forma complexa.
- Vamos esquecer, tudo bem? Fingir que nunca aconteceu.
- Fingir? - ela me interrogou como se não tivesse ouvido a palavra.
- Sim, não deixar que isso interfira na nossa amizade.
- Você me prometeu que não se afastaria por causa disso.
- E eu não vou - assegurei. A verdade é que, mesmo que eu quisesse, não iria conseguir.
- Por quê você quer fingir? - ela veio para perto de mim e eu dei dois passos para trás.
- Ontem foi maravilhoso, senti coisas que eu nunca senti antes na minha vida. Eu fui dormir sorrindo. Mas eu não posso, entende? Não é justo com você. Você disse pra eu viver o ontem e deixar a culpa pra hoje, é isso que tô fazendo.
- Olha, eu respeito, só não posso dizer que entendo completamente. Mas eu não posso fingir, nem que eu pudesse, jamais conseguiria sabendo que ontem foi a melhor tarde da minha vida. Se você quer mesmo, a gente pode não falar disso e deixar quieto, mas fingir não dá.
- Eu preciso deixar isso quieto. Eu tô com inúmeros sentimentos dentro de mim, que eu não sei lidar ainda.
- Eu entendo, Lu, perfeitamente. Super entendo, na verdade.
- Obrigada - a conversa tinha sido mais fácil do que eu imaginei.
- Só um pedido - olhei-a gentilmente, sua bochechas estavam rosadas do pouco sol que dividimos ontem - se a gente não vai mais falar desse assunto, então me dá um último beijo.
- Aqui? Agora? - ela deu dois passos para perto de mim, quase me prendendo entre o corpo dela e a pia.
- Aqui e agora...
- Valentina...
A ruiva seca acabara de entrar no vestiário como se já soubesse que estaríamos ali. Valentina deu dois passos para trás, se afastando. A ruiva chegou próximo o bastante para grudar no pescoço dela.
- Preciso ir.
Dei uma última olhada e ela também me encarou. Minhas mãos começaram a formigar e a raiva a queimar o meu sangue. De todas as horas possíveis para a seca aparecer, ela surgiu justamente na pior hora.

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A Harmonia
Hayran KurguVocê acredita em akai ito? A premissa do fio vermelho que conecta duas almas, fora dos limites que o senso comum acredita que a vida possui. Acreditar nisso é a base para essa história. Luiza Campos e Valentina Albuquerque são estudantes de medicin...