Feito Fotografia

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O dia começou cedo. Não queria ter o desprazer de chegar atrasada no hospital e ter o Dr. Airton falando no meu ouvido. Ele é um médico excelente, mas chega a ser insuportavelmente chato e mesquinho.  Eu certamente tinha problema para me relacionar com as pessoas dali. O bloco da cirurgia abriga as pessoas com os egos mais inflados que você pode conhecer.

O primeiro compromisso do dia era uma reunião geral para dividir os alunos nas especialidades cirúrgicas. Eu não gostaria de passar pelo constrangimento de entrar na sala abarrotada de pessoas estranhas me olhando. Aquele lugar já tinha suas panelinhas definidas. Sentei do lado da parede, nem no meio, nem na frente, e um pouco mais atrás. Era o lugar perfeito. O auditório era grande, confortável e refrigerado. Assim que terminei de ajeitar meus pertences, vesti meu jaleco e aguardei o início da distribuição. As pessoas ali ainda estavam dispersas, pois ainda não tinha começado. Aos poucos, mais e mais pessoas iam chegando e se acomodando nos seus respectivos lugares, até que observo Valentina adentrar o auditório. Assim que ela percebe a minha presença, ela se aproxima e senta ao meu lado, me dando um leve sorriso. Não chegamos a conversar, pois logo o diretor chega para dar início.

- Bom dia, futuros doutores - o homem que falava conosco era grisalho, usava óculos. Tinha uma barba rala. Falava conosco sorrindo. Todos ali responderam bom dia - Como vocês bem sabem, precisamos separar vocês em grupos de cinco pessoas e designar cada um desses para diferentes especialidades dentro da área da cirurgia. Cada grupo será acompanhado por um residente, e ele, por sua vez, terá a obrigação de ensinar tudo o que vocês precisam aprender. Vocês continuarão participando das cirurgias, tanto as realizadas pelos residentes quanto quando vocês forem solicitados pelos atendentes.

O diretor não era nada arrogante, nem mal educado. Quem dera que todo o resto tivesse a mesma atitude que ele. Hospitais não são os lugares mais leves de se conviver.
- Aos novos internos que estão estagiando conosco, sejam muito bem-vindos. É um enorme prazer recebê-los e vocês serão incluídos nos demais grupos. Não se preocupem, tem espaço para todos - ele seguia sua fala.

Eu não sei em qual ponto eu parei de prestar atenção ao que ele dizia, mas sei que perdi totalmente o foco quando involuntariamente meu olhar se voltou para Valentina. Ela se ajeitava na cadeira ao meu lado, entrando numa postura para dar início ao ato de fazer um coque em seus cabelos, deixando sua nuca exposta. Engoli seco. Seu cheiro estava evidente. Era doce, diferente. Tenho certeza que eu reconheceria esse cheiro não importa o local ou a ocasião. Eu só parei de fita-lá quando observei todas as pessoas se levantarem dali e se dirigirem aos seus respectivos postos.

- Parece que vamos ficar juntas pelos próximos dias - Valentina disse.

- É o que parece - eu afirmei. Não havia escutado a palestra, não sabia nem em qual especialidade iríamos ficar - Você sabe me dizer em qual especialidade ficamos? Acabei me distraindo.

- Claro. Nós ficamos na neurologia.

Saímos dali em direção a ala de neuro, no caminho não conversamos. Estávamos com mais outras 3 pessoas. Alice, Léo e Otávio. Otávio era o mais velho entre nós. Tinha 50 anos. Resolveu fazer medicina quando já tinha uma carreira estruturada na área da engenharia. Ele era casado e tinha duas lindas filhas, Clarice e Sol. Ele nos contava que as duas já diziam que também iam ser médicas.

Durante os atendimentos, Valentina não puxava assunto comigo, não fazia muita questão de me olhar. Todavia, bastava um mínimo intervalo entre os rodízios entre os pacientes que ela começava a tagarelar alguma bobagem. A pergunta que vinha a minha cabeça era: como ela tinha tanto assunto assim? Em certo momento, tivemos que nos dividir para fazer atendimentos individualizadas. Ao final desses atendimentos, fomos para a sala do Dr. Erick, chefe da neurocirurgia. Eu fui a primeira a chegar, observava aquela porta com atenção, esperando que cada pessoa que entrava por ali fosse Valentina. O estranhamento de sensações voltava a pairar sobre mim. A porta rangia, eu olhava e não era ela.

Dr. Erick deu início a abertura de alguns casos que havíamos visto pela manhã, nos passando todas as informações necessárias sobre os casos e os pacientes. Quem o ajudasse a fazer o diagnóstico de um dos pacientes, iria ganhar a oportunidade de participar da cirurgia e operar junto com ele. Passados 10 minutos de sua apresentação, Valentina chega com os olhos inchados, vermelhos, e o cabelo amarrado de qualquer jeito. Sua voz rouca estremeceu a sala. Ela pede desculpas pela demora e o inconveniente e volta a se sentar perto de mim.

Tentei não dar tanta importância ao que estava perto de mim, voltando a anotar as informações necessárias e algumas indicações de livros para estudar que o Dr. passava. Quem seria capaz de fazer uma mulher tão... Ah... Quem seria capaz de fazer esse ser chorar? Valentina encarava a apresentação com uma expressão totalmente séria, estava vidrada num ponto fixo e parecia que nada a tirava daquele transe. Após algum tempo, reparei nela outra vez. Dessa vez, Valentina anotava algo numa folha de papel pequena. Em seguida, me encarou e pediu que Alice me passasse algo que parecia um bilhete. Pensei em não pegar, confesso. Deixei-o em cima da cadeira na qual eu estava sentada e voltei meu olhar para ela, ela dizia mimicamente com seus lábios: "Abre". Não atendi seu pedido, queria me concentrar no que estava sendo dito ali. Ela se levantou, veio em minha direção, dessa vez se sentando ao meu lado. Como um sussurro pediu para eu abrir novamente o bilhete e sua voz invadiu meu ouvido de tal jeito que arrepiou meu corpo inteiro. O perfume dela estava inundado naquele bilhete. Como uma pessoa impregna seu cheiro num pedaço de papel sem quase o ter tocado?

Resolvi abrir o bilhete, afinal minha concentração no que estava sendo passado já tinha se perdido. Havia um desenho, eu supus que se tratasse de mim, as linhas retas que desenhavam os braços e o corpo pareciam ter sido feitos por uma criança.

- "Sonhei com você" - estava escrito logo ao lado do desenho.

Meu coração parecia sair a qualquer momento da minha boca. Seria possível um sonho semelhante a nós duas? No fundo, eu esperava que não.

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