Semente

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Eu estava com catapora. Há aproximadamente 20 dias, atendemos na ala pediátrica uma criança que chegou ao hospital com suspeita da doença. Eu nunca havia pegado. Devido ao nosso contato, mesmo com as medidas de precaução, eu acabei ficando doente. Eu estava de quarentena e Valentina vinha me visitar todos os dias, me passava os relatórios e tudo o que haviam deixado para o nosso grupo. 

- Pode entrar.

O mesmo horário e a mesma forma de bater na porta. Todos os dias Valentina aparecia com um cordão novo que carregava um símbolo diferente, mas apesar de já ter observado, eu nunca havia comentado, até então. Valentina se vestia na mesma paleta de cores de todos os dias, voltada para o preto. Nunca algo estampado. Ela gostava de cores neutras e de blusas curtas, na altura de sua cintura.

- Como você está se sentindo hoje? - perguntou enquanto deixava os prontuários e anotações em cima da cabeceira.

- Eu tô bem, mas ainda não parou de coçar - ela se aproximou de mim e me depositou um beijo na testa enquanto me abraçava. Sua presença não era incômoda para mim, ou invasora. Valentina era animada, divertida, me deixava a vontade para ficar em silêncio, o que deixou de ser frequente como era no começo. Valentina pegou minha mão, fixando o olhar em meus dedos. Minhas unhas estavam enormes e acabavam ferindo meu corpo na hora de coçar, já que eu não aguentava e acabava me coçando.

- Cadê o seu cortador de unhas? - ela perguntou.

- Agora é só o que me faltava, você querendo cortar as minhas unhas.

- Deixa de ser teimosa, Luiza. Cadê o seu cortador?

- Dentro da primeira gaveta da cabeceira, numa bolsinha com materiais de unha.

Olhei para ela um pouco assustada. Já estava habituada de escutar ela me chamando de Lu. Ela foi até a cabeceira buscar o cortador, voltou e puxou minhas mãos para si e começou a cortar. Desde o delírio que tive com as febres, não sonhei com ela. O que era até bom, porque assim eu não tentava decifrar esses sonhos impossíveis de interpretar, gastando toda a minha sanidade mental. Ver ela cortando minhas unhas me fazia sentir vontade de rir, e então eu não me segurei e caí na gargalhada.

- O que foi? - ela me olhou confusa.

- Tô parecendo uma criança e você a mãe.

- Esqueci de te falar. Colocaram outra pessoa no seu lugar no nosso grupo.

- Eu não vou ter como voltar depois?

- Eu não sei, mas posso perguntar pro diretor. Mas acho que vai conseguir sim, afinal é só um atestado por você estar doente. Precisaram colocar pra não deixar a garota de fora. Se quiser, eu posso falar essa próxima semana.

- Te agradeço muito. O quanto antes, melhor.

- Posso dizer outra coisa?

- Claro, com certeza.

- É chato passar o dia todo sem saber ou falar com você.

Eu dei um sorriso sincero e a olhei fixamente. Valentina era o tipo de pessoal que eu jamais pensei que pararia na minha vida. Ela tinha uma alma tão leve, um jeito único. Ela era diferente das pessoas que já haviam passado pela minha vida.

- Você é uma irmã pra mim, Valen.

Ela fez um meio sorriso e não disse nada, e então continuou a cortar as minhas unhas.

- Por que você escolheu fazer medicina?

Valentina não me falava muito da sua vida, enquanto eu já tinha dito pontos super importantes da minha para ela que ela já sabia de cor e salteado.

- De certo modo, sempre foi um sonho meu. Mas também é um sonho da minha mãe, e se as coisas não saem do jeito dela, ela se torna uma pessoa impossível de conviver e lidar. Então a minha escolha foi baseada por vocação e pelo fato de ser o que a minha mãe queria pra mim. Com o tempo eu fui me apaixonando mais pela profissão, principalmente por vivenciar ela fora do ciclo básico.

- Você quer se especializar no que?

- Por enquanto, pediatria mesmo. Por isso eu passo tanto tempo com a Dra. Solange. Ela dirige um programa em São Paulo e é pra lá que eu pretendo ir quando me formar.

- Você vai embora?

- São os planos.

- Agora que eu te conheci - falei com um pesar perceptível na minha fala, desanimada demais para conseguir esconder.

- Por que tu não vai também? Já sei que quer cirurgia e quer se especializar na área oncológica. A USP tem um dos melhores centros pra você fazer sua residência. É o lugar perfeito pra ti.

- Isso é possível? - perguntei a ela enquanto eu refletia em voz alta. Sei que sorri imaginando a hipótese pois ela compartilhava o mesmo sorriso que o meu. O que eu mais queria era passar numa residência em São Paulo, mas a concorrência e deixar tudo para trás me assustava. Nesse momento, ela me dava a semente de um sonho.

- Tudo é possível, Lu.

Valentina procurou meus olhos. Tudo o que eu conseguia sentir naquele momento era o quão bom poder estar com ela.

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