Ômega

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- Bom dia.

Minha voz estava mais rouca que o natural. Aquela hora da manhã e eu acordada.

- Que bom dia maravilhoso. Nada me deixa mais feliz do que ter as minhas três filhas aqui comigo hoje - disse meu pai, Augusto, com um sorriso genuíno às 8h da manhã de um domingo.

- Só você pra acordar com essa felicidade toda.

- Como não acordar assim? Vocês são a minha alegria - disse, olhando para mim, que me sentava a mesa com ele, Carol que acabara de se juntar a nós e Sarah, que estava deitada no sofá coçando os olhos.

Não pude deixar de notar a bermuda amassada que meu pai usava. Certamente vestia a primeira que encontrara no seu guarda roupa. Estava com o cabelo molhado, como quem tinha acabado de sair do banho, perfumado. Sinal de que ele iria sair.

- Qual o seu roteiro de hoje? - perguntei.

- A princípio tenho que passar no colégio para buscar um material. De lá vou visitar uns amigos. Você quer que eu te deixe no estúdio da sua mãe?

- Quero, por favor.

Era de praxe eu tirar as manhãs de domingo para dançar no estúdio da minha mãe. Depois de uma semana cansativa, com muitas exigências da faculdade, era importante para mim tirar esse tempo. Esse peso da rotina me fazia sentir distante da minha mãe, apesar de eu estar ajudando a salvar vidas. Logo, tirar algumas horas do meu dia para dançar e me conectar com sua essência num espaço que era completamente a sua cara era imprescindível.

A dança preferida da senhorita Sônia era bachata. Desde muito pequena, nossa mãe nos incentivou a aprender os passos desse estilo. Todavia, Carol e Sarah nunca foram muito fãs de dançar. Aquelas duas não tem papas na língua. O hobby delas é a fofoca. Eu decidi seguir dançando, me apaixonei desde o primeiro momento, até por ser algo que sempre nos uniu.

Ao chegar no estúdio, desci do carro e caminhei devagar até o portão. Estava com uma mochila com algumas coisas como uma roupa para trocar, uma toalha para secar o suor e uma garrafinha de água. Antes de entrar, me deparo com uma cena um tanto quanto curiosa, algo que eu não esperava. Era a Valentina. Aparentemente ela estava praticando alguma atividade física, pois vestia roupa de ginástica e estava levemente suada. Eu não esperava encontrar ela ali perto, aliás nunca havia a visto por ali. Será que ela morava pelo bairro?

O bairro onde o estúdio da minha mãe se localizava era nobre, quem morava ali geralmente tinha um grande poder monetário. Não me assusta a possibilidade dela morar nessa região. Sua piada sem graça no outro dia é claramente de uma pessoa sem consciência de classe, fútil, elitizada. Tentei me apressar em abrir o estúdio, mas deixei a chave cair no chão e ela prontamente acabou escutando e percebendo a minha presença. Minhas tentativas de passar despercebida por seus olhos verdes claramente falharam. Logo ela se aproximou.

- Parece que toda vez que eu estou perto você deixa alguma coisa cair. Te deixo nervosa de alguma forma? - um sorriso surgiu em seu rosto, o seu olhar escureceu e me penetrava de uma forma que eu nunca havia sentido antes. Ela me analisava, não tirava os olhos dos meus, como se estabelecesse algum tipo de conexão que nos mantinha presas numa espécie de gaiola, na qual nós só podíamos nos olhar.

- Eu estava torcendo pra não aparecer nenhuma assombração. Pelo visto, não deu certo - cerrei meu olhar e logo quebrei o contato visual, olhando para os lados, impaciente.

- Você não respondeu a minha pergunta - ela abriu um sorriso ainda mais largo, como quem sabia que tinha me atingido.

- Valentina... - me aproximei de seu corpo, deixando uma distância tão pequena que quase pude sentir sua respiração na minha pele. A minha intenção era desfazer aquele maldito sorriso dos seus lábios. Tive êxito. - você não me deixa nervosa, muito menos me intimida. Você não tem coisa melhor pra fazer?

- Agora que eu esbarrei com você, não tenho mesmo - bufei.

- O que você quer? Perturbar a minha paciência? Eu tenho mais o que fazer, Valentina.

- Eita, calma, Luiza, eu tô brincando com você - olhei para os lados, realmente fui um pouco grossa, mas não vou dar o braço a torcer - Esse estúdio é seu?

- Tecnicamente é meu. Minha mãe era a dona do espaço. Eu costumo vir aqui. Agora se você me dá licença, estou querendo muito entrar, pode ser?

- Vai me convidar pra entrar?

Eu deveria negar, afinal, a Valentina tinha um gênio que me irritava. Mas por ironia do destino ou porque a sua presença de alguma forma me instigava, resolvi aceitar deu auto convite.

- Entra. Me ajuda a abrir.

E assim caminhamos até uma das salas que tinham por lá. Enquanto nos dirigíamos a ela, abríamos algumas janelas, e ela, com a garrafa que estava em suas mãos, derramou um pouco de água nas plantas que tinham por ali. Me surpreendi. Era como se ela já estivesse familiarizada com tudo aquilo. Mas afastei esse pensamento e me concentro no silêncio que se instalou entre a gente por poucos minutos, enquanto íamos organizando o lugar. Liguei o ar condicionado da sala e então entramos.

- Esse lugar é muito lindo. Encantador. Sua mãe deve ter muito orgulho de você por cuidar tão bem dele.

- Acho que ela teria. É como se esse estúdio fosse mais um filho dela.

- O que aconteceu com ela? Se você me permite perguntar.

- A minha mãe teve câncer. Era muito raro, quando descobrimos, os médicos disseram que, pelo avanço da doença, seus cuidados seriam apenas paliativos. O processo todo até seu falecimento demorou uns 6 meses.

- Nossa, que triste. Ela faleceu há quanto tempo?

- Esse ano farão 3 anos.

- Entendi. Meus sentimentos.

- Obrigada. Você dança alguma coisa?

- Algumas, sim. Fiz ballet desde que me entendo por gente. Era umas das coisas que a dona Catarina, minha mãe, me obrigou a fazer. Mas confesso que foi bom, o ballet se tornou uma forma de refúgio em algum momentos, apesar de eu não praticar tanto. E você, Luiza, o que você gosta de dançar?

- Bachata.

Estávamos sentadas. Ela se levantou num salto, com uma rapidez que eu pensei que não fosse possível, caminhou pela sala, passando os dedos nas paredes, sentindo o local. Seu ato me impressionou. Era uma sensibilidade que eu só havia visto ela usando quando estava atendendo aquele garoto no pronto socorro.

- Me concede uma dança? - seu pedido me assustou.

- Não sabia que você dançava bachata.

- Eu arranho. Vem? - ela segurou minha mão e eu senti um choque ao tocar sua pele pela primeira vez. Era macia, quente. O suor de antes não atrapalhava. Caminhamos devagar até o centro da sala. Em seguida, vejo ela soltar da minha mão e dar play na música. Eu conhecia a melodia.

Ela se aproximou e assim dançamos, sem combinar passos, sem ensaio, somente uma dança. Vez ou outra nossos corpos se chocavam. Era como se nós já nos conhecêssemos. Eu sentia uma conexão gigantesca quando estávamos juntas e eu não sabia explicar da onde aquilo tinha surgido. Como podem os nossos corpos se conhecerem tanto se nunca se tocaram? Os passos em sintonia, a respiração tão próxima. Senti uma onda de prazer descer pelo meu suor, acho que estava sentindo nervosismo. Aquela dança estava mexendo comigo. Me desvencilhei dela quando num passo fiquei por trás de Valentina, enquanto suas costas tocavam a parte da frente do meu corpo, como se de alguma forma nos encaixássemos perfeitamente, como um quebra-cabeça. Seu cabelo estava solto, minha mão em sua cintura, e ela a tocava, a prendendo em si. Merda, o que estamos fazendo? Eu não tinha motivos para ficar nervosa, mas não queria pensar nisso agora.

- O que houve? - ela me perguntou sem entender porque eu havia me afastado repentinamente, pausando a música.

- Não houve nada... só acho melhor pararmos por aqui. Vou tomar um pouco d'água - seu rosto apresentava uma feição cada vez mais confusa. Mas ela aceitou tranquilamente e bebeu o resto de água da sua garrafa também.

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