Constelações

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Era sábado. Pedi para o meu pai me levar ao estúdio pela manhã e me buscar na hora do almoço. Ele me deixou e de lá foi visitar uns vilarejos no interior.

A dança e eu, como sempre foi, e a presença espiritual da minha mãe. Eu sempre a sentia por perto quando dançava. Eu gostava de iniciar sempre dançando a música favorita dela. Meu pai me disse que era a música que ela cantava todas as noites antes de dormir, era quando eu me acalmava e diminuía o ritmo dos chutes na barriga dela. Como era possível sentir tanta falta de uma pessoa? Seus olhos me guiavam do céu, eu sabia disso.

Era minha sexta música quando notei que tinha alguém sentado no banco próximo à porta. Encolhida, com os cabelos baixos, pareciam molhados. Fiquei-a encarando sem me mexer, nem dizer nada, e ela também fez o mesmo. Aquele espaço de lugar e silêncio nos conectou em alguma imensidão que até hoje desconheço. Era tão benigno vê-la novamente. Olhei para o chão e permiti que meu corpo retomasse os passos de bachata. Era, na verdade, muito difícil me concentrar sabendo que ela estava me olhando, sem nem fazer ideia do que se passava naquela cabeça. Quando dei por mim, já estava finalizando a segunda música desde que ela se fizera presente, notei que seus passos vinham caminhando vagarosamente em minha direção. Tentei fazer a leitura de seu rosto e não consegui ver nada que me gerasse o sentimento de preocupação. Ela parecia bem, os lábios cerrados, séria demais. Coloquei para tocar uma música que tinha exatamente o ritmo que ela gostava, de um filme que tínhamos visto. Percebi que reconheceu quando me entregou um sorriso enquanto seus olhos ficavam pequenininhos.

- Paz - ela disse num tom rouco quando finalizei a música.

- É - olhei ao redor com um sorriso no rosto e ficamos em silêncio de novo, só que dessa vez não dancei.

- Acabei de achar o melhor lugar do mundo - ouvi sua voz dizer após tanto tempo calada.

- Achei que você chegasse só amanhã, me pegou de surpresa.

- Tava planejando que isso acontecesse pra te ver dançando, toda entregue, concentrada.

- Golpe baixo, Valentina.

- Eu aceito as consequências - ela deu uma leve risada e ficou em silêncio - minha mãe gosta muito dessa música que você dançou.

- Você não me fala muito sobre ela - desconversei, mas com a nova informação penetrando minha mente.

- Qualquer dia eu falo mais. Vim convidar você pra comer lá em casa, ele tá preparando uma lasanha.

- Tenho vergonha do seu pai.

- Eu disse que ia chegar hoje pra te ver, ele sugeriu fazer uma lasanha e te convidar. Ele é muito bom na cozinha,  você não vai se arrepender.

- Sem chantagens.

Ela veio se aproximando de mim até chegar a uma distância de dois metros de mim, estendendo sua mão. Eu não saberia como recusar uma mão estendida. Levantei minha mão e coloquei em cima da palma dela e saímos juntas até o carro estacionado. A rádio tocava baixo e eu não conseguia parar de pensar no sonho. Saímos rápido e no caminho ela foi contando sobre como o avô dela estava, dando todos os detalhes. A tia dela morava lá, então ela ficava mais tranquila sabendo que ele estava sendo bem cuidado. Ao chegarmos perto da casa dela, vi um animais tomando o sol da manhã perto da varanda dela. Não lembrava de ter visto algum da última vez que fui lá. Era um filhote branco, lindo.

- Não lembro dele - comentei alto.

- É o meu bebezinho, Duke.

Ela saiu do carro e foi direto fazer carinho no filhote que se espreguiçava enquanto brincava em movimento lento com suas patinhas. Era a cena mais bonitinha que eu via em séculos. Ela demorou um pouco mais fazendo carinho na barriga do cachorro até me convidar para entrar. Entrar na casa dela era como se fosse a primeira vez, a decoração me roubava a atenção. Eu me perdia olhando o vento brincar com as penas dos filtros de sonhos.

- Você gosta, Luiza? - a voz dele cobriu o barulho do vento que encontrava os galhos das árvores.

- Sua casa é maravilhosa - olhei-o com ternura e profunda admiração.

- Filha, pegue o vinho na geladeira que eu comprei pra gente tomar e serve pra gente. A Neide não veio hoje, disse pra ela não vir - Valentina se dirigiu à cozinha e sumiu no corredor, mas logo voltou com três taças e distribuiu para cada um de nós.

- Pai, você pode passar a minha pomada por favor? Começou a queimar de novo.

- Minha filha, eu tô com as mãos ocupadas agora. Você pode pedir pra moça bonita - ela deu uma olhadela para ele e ele sorriu com uma piscada torta.

- Você pode, Lu?

Concordei com a cabeça e segui até o quarto dela. Ela abriu um lado do guarda-roupa e sua pomada estava na parte mais alta do móvel. Ela ficava na pontinha dos pés para tentar alcançar a pomada e eu quase ri da situação, mas me segurei. Ao perceber que ela não conseguiria alcançar, me aproximei de seu corpo. Ela era mais baixa que eu. Estávamos próximas demais e o espaço era curto ali. Estiquei um pouco meu braço para alcançar a pomada.

- É essa aqui? - falei baixo, pois minha boca estava próxima ao seu ouvido.

- Sim, é essa... Obrigada.

Entreguei a pomada para ela e ela sentou na cama, virando-se de costas para mim e tirando a blusa. O gelo veio por minhas pernas, subiu pelo meu tronco e congelou minhas mãos. Meu coração acelerou de uma maneira tão bruta. No canto bem acima da costela esquerda tinha um caroço avermelhado, inflamado demais. Abri a pomada e joguei a luva que ela me deu no chão, coloquei sobre meu dedo um pouco da pasta branca e passei com suavidade por cima e em torno do caroço. Quando terminei, perdi a noção da coerência e comecei a passear com o mindinho pelos infinitos sinais que haviam nas costas e ombros dela. Ouvi um som abafado de um riso preso.

- Tem uma constelação inteira em você - comentei enquanto meus dedos passeavam pelas suas pintas.

- Quer cobrir?

- Quero.

Disse, sabendo que meu olho estava tremendo. Ela pegou a camisa em cima da cama e colocou ela toda dobrada por cima dos seus seios, segundo ali. Caminhou em direção à sua escrivaninha, voltando com um pincel vermelho. Ela voltou de frente e me encarou com um sorriso de canto no rosto. Por um instante, imaginei como seria se ela me beijasse ali e agora. Deitou na cama e eu tive a certeza que tinha algo definitivamente acontecendo comigo. Sentei do lado de seu corpo, e antes que eu pudesse começar a traçar com o pincel, passeei com meus dedos por toda a extensão daquelas centenas de sinais. Tive a certeza que mais temia: ela me provocava as sensações mais estranhas do mundo.

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