Liberdade

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Autora: mais um capítulo. Tô inspirada hoje. ✌🏻

Eu não conseguia parar de pensar naqueles olhos esmeralda me fitando de uma maneira que eu nunca vi antes. Valentina nunca tinha olhado daquele jeito para ninguém. Eu ainda estava muito sonolenta para pensar corretamente, pensei em comprar um café para espantar o sono, mas eu não tinha coragem para levantar da cadeira, imagina ir atrás de café. Os minutos pareciam não passar, tudo o que eu queria era fugir para casa o máximo de tempo que eu conseguisse. Para completar, eu tinha que conversar com o Bruno para descartar da mente dele qualquer possibilidade de romance entre a gente. Eu desejava muito um amor que me arrancasse o ar, transbordasse, eu era uma romântica incurável. Mas Bruno não conseguia nem me prender duas horas em sua presença sem que eu olhasse para o relógio para contestar a hora de ir para casa. Talvez o universo, Deus, estivesse preparando alguém especial para mim.

- Luiza, tão cedo por aqui - o diretor estava desfilando pelo pátio com as mãos no bolso e o cabelo todo bagunçado.

- Pois é, doutor.

Ele me encarou ainda um instante com curiosidade antes de me deixar sozinha novamente. Aos pouquinhos os pacientes e o restante das pessoas iam chegando. A maioria vinha em grupo, se dissipavam pelo espaço e faziam algazarra em alto e bom tom. Cada pessoa que chegava eu imaginava que era ela, procurava por ela. E nunca era. Eu permaneci na minha cadeira esperando por ela e tomei um verdadeiro chá de cadeira, quando ela finalmente surgiu junto a um grupo de amigos. Acenei para ela, sei que me viu, mas ela não me correspondeu. Engoli a saliva, a vergonha tinha engatado na garganta. Ela estava acompanhada de 2 rapazes, sendo um deles seu irmão, e 2 outras garotas, uma ruiva e outra loira. Eles riam sem parar e conversavam. A ruiva, em determinado momento, estava atracando seus braços no pescoço de Valentina. Qual o motivo dessa proximidade toda? Podia-se ouvir a gargalhada de Valentina a distância.

Fiquei aguardando mais um pouco, talvez ela viesse até mim quando me visse. Provavelmente ela não teria me visto acenando. E passou-se mais uma parcela de tempo, até que notei que ela não vinha, pois se dirigiu ao auditório junto aos outros. Guardei comigo o constrangimento e fui para o auditório também. Demoraram eras até que finalmente encontrasse uma cadeira por perto disponível. As apresentações haviam iniciado há um bom tempo, peguei um monólogo no meio. Depois do monólogo, uma música foi tocada por uma moça magra, com longos cabelos vermelhos. Houveram mais três ou quatro apresentações de outras manifestações culturais e palestras sobre saúde. E então, ela entrou no palco acompanhada de Leandro e o outro rapaz. Ela estava com aquele sorriso de sempre e por um instante eu pude esquecer daquele olhar fuzilante do banheiro. Ela declamou o verso de alguma poesia que eu nunca havia escutado antes e depois, começou a dançar. A música parecia brincar no corpo dela, pulava dentro do espaço que ela era, os olhos se fechavam e abriam em sintonia, as mãos desciam, tecendo desenhos pelo ar. Leandro e o outro rapa acompanhavam cantando. Foi quando notei que a música  era no ritmo lento que ela tanto gostava. A voz dos rapazes fazia contraste com a dança. Ela era muito boa. Era impossível não notar a conexão que ela tinha com a música. Quando ela terminou, tudo o que eu senti foi uma vontade exasperada de me desculpar.

Eu sentia falta da companhia dela, e era tão sem sentido me afastar sem nem ter a certeza do que eu supunha. O jeito dela era aquele com todo mundo. Talvez eu estivesse errada em meus julgamentos. Quando ela desceu do palco, eu fiz questão de ir atrás dela. Quando a acompanhei, ela já estava quase na altura do portão de saída para o estacionamento. O passo dela estava bruscamente acelerado.

- VALEN - eu disse alto o suficiente para que ela pudesse me ouvir totalmente, e ela ouviu. Os passos desaceleraram, a pressa deixou o andar. No entanto, ela continuava caminhando - eu amei a sua apresentação.

Ela não me respondeu. Por um instante, meu corpo esmoreceu. Ela estava, com absoluta certeza, me ignorando.

- Não vai falar comigo? - eu insisti antes que eu decidisse sair de perto dela de uma vez.

- O que você quer? - ela virou para mim, dessa vez carregada de aspereza.

- Não fala assim - pedi com a voz falhando. Ela ficou parada, me encarando sério.

- O que você ia me dizer no banheiro?

- Na verdade nada, desisti de dizer. Não vale a pena.

Minha mão a essa altura havia perdido a circulação de sangue, eu nem a sentia mais.

- Seus olhos demonstram tanta agressividade que já dizem muito.

- Meus olhos não dizem nem dez por cento do asco que estou sentindo por ti - emudeci. Meus olhos começaram a queimar.

- Desculpa - foi tudo o que eu consegui dizer sem que eu começasse a chorar.

- Desde o dia que você soube que eu era lésbica você ficou totalmente diferente comigo. Pensei que era só coisa da minha cabeça, que eu estava viajando nas ideias, mas depois de hoje - ela engoliu seco -, eu não tenho dúvidas do tipo de gente que você é.

- Me desculpa, Valen - era impossível controlar. Elas já tinham começado a descer descontroladamente pelo meu rosto.

- Eu não sou contagiosa. Não é doença pra você se afastar.

- Não é isso.

- É o que então?

- Só não queria que você confundisse as coisas na nossa amizade.

- Quem confundiu as coisas aqui não fui eu.

- Sinto muito - meu choro tinha se tornado pior, o olhar de repulsa que ela me entregava piorava tudo.

- Pensei que você fosse outro tipo de pessoa - ela ficou calada me olhando desmoronar - me enganei contigo, pelo jeito.

- Não diz isso.

Ela me olhou por uma última vez e foi embora. Os olhos verdes sempre tão cheios de calma e paz tinham dado lugar a um tipo de olhar que eu não queria receber nunca mais.

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