Capítulo 2

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Fórmula 1; meu maior sonho. Qualquer um ficaria muito feliz de imediato, ou atônito por não acreditar que conseguiu.

Eu, porém, tinha coisas a mais para me preocupar com uma vaga em um monoposto.

Não é segredo de ninguém que os Laurent tem uma história rica no automobilismo. Rica no sentido de trágica e infeliz, pois foram tantas ocorrências que seríamos capazes de escrever um dossiê extenso sobre. Meu sobrenome era um sinônimo de ascensão, mas de ruína; uma benção, que vinha com uma maldição horrível que cobrava um preço cruel por sermos talentosos no que mais amamos fazer. É hipócrita sermos tão bons em algo que em algum momento vai nos fazer mal. Isso é injusto, como muitas coisas na vida.

Minha irmã corria na Fórmula 2 quase que junto comigo, eu na ARTY e ela na PREMÍ (Nem me pergunte quem deu esses nomes para as equipes). Marilyn estava a mais tempo na categoria como reservista, e conseguiu uma vaga titular no mesmo ano que eu, que passei da F3 direto para a F2, e foi quem me ajudou a me adaptar em uns primeiros momentos. Sinto dizer que destino não foi tão brando com ela quanto comigo.

Mary sofreu uma batida faltando três corridas para o fim de minha primeira temporada. Lembro-me de ver o replay do acidente no paddock; os carros batendo violentamente, subindo uns nos outros, minha irmã capotando e rodando até bater direto na barreira e o silêncio do comentarista quando viu aquilo.

Me recordo perfeitamente de quando parei em um canto fora dos limites da pista, e vi o motivo de ter sido avisado sobre uma obstrução no circuito sem saber que Marilyn estava envolvida na batida... me lembro do pânico que se instalou em minha mente quando visualizei seu carro quase que todo destruído, os marshalls tirando ela de dentro daquele monoposto e os médicos tentando reanima-la fazendo massagem cardíaca.

Aquele foi um dia pesado em Suzuka. Uma das mais promissoras pilotos nunca mais iria entrar em um autódromo do jeito que amava fazer, tirar fotos com os fãs, participar de entrevistas, coletivas e corridas. Tudo aquilo havia se acabado.

Minha irmã não morreu, mas quando ficou em uma cadeira de rodas durante quase um ano porque não conseguia andar sem sentir dor, ela se sentiu bem perto disso.

Não só ela, mas meu tio e meu bisavô também fizeram parte dessa estatística; um se machucou feio em uma batida na 24 horas de Le Mans, onde houve um incêndio decorrido da ruptura do tanque de combustível, e o outro capotou seu carro em um campeonato de rali.

Incrivelmente, meu avô jogou nosso histórico familiar pela janela e ganhou uma Indy 500. Nós tínhamos uma foto dele segurando uma garrafa de leite e com uma guirlanda enroscada em si mesmo pendurada na parede da sala. Tudo bem que ele parecia estar usando uma decoração de natal, mas a coroa de flores era muito bonita. Ele havia sido o único de nossa família que tinha conseguido ir até o fim.

Meu pai, porém, havia tentado seguir os caminhos do rali, pois não era muito fã de ficar rodando em círculos numa pista em formato de ovo como meu avô. Mas ao saber do acidente do meu tio Cyril, ele decidiu que não gostaria de tentar a sorte. Minha irmã ainda estava na barriga da nossa mãe quando ele anunciou sua aposentadoria do mundo dos motores. Muitos ficaram tristes, mas outros só tiveram a comemorar, pois ele já tinha sido campeão mundial e bem... menos um para brigar pelo título, né?

Ficou um clima estranho quando contei a minha família sobre minha nova vaga. Eu ainda não tinha assinado o contrato, porém, ainda dava para desistir, o que era uma opção para se levar a sério.

De uns tempos para cá, aprendi que, a cada categoria que um Laurent passa um ano correndo sem se ferrar, ele só irá prosperar. Porém, se eu colocar a carroça na frente dos bois e for ousado demais, a chance de me acidentar ao subir um degrau no esporte é consideravelmente maior. E quanto mais alto você está, maior é a queda.

Por isso eu fiquei preocupado e comecei a chorar quando soube do contrato, pois poderia ter de recusar a chance da minha vida apenas para continuar vivendo.

Como eu disse anteriormente: minha condição é cruel, e até seria impetuosa se algum de nós tivéssemos acidentes fatais em vez de um grave, como é o nosso caso.

- Me diz, Jacques. O quê realmente quer para si?

Minha irmã mordeu seu croissant, de jeito bruto e engraçado. Ela não tinha os modos mais exemplares e elegantes, mas ainda era graciosa enquanto me fazia passar vergonha.

- Eu não decidi, Mary - Falei, me sentindo mal, querendo sair de lá o mais rápido o possível de tanto desconforto que aquele assunto me causou.

Ela assentiu com a cabeça.

- Bem, tem que ver isso com a mamãe e o papai - Marilyn gesticulou com seu lanchinho da tarde. - Você mora sob o teto deles... e ainda é menor de idade, portanto...

Eu já havia conversado com eles. Meu pai ficou indiferente, e minha mãe, preocupada. Sabiam que aquela era uma decisão minha, e não quiseram interferir nas minhas considerações finais. E caso meus pais fossem totalmente contra, não seria um grande problema para mim, pois a temporada já iria começar quando eu tivesse dezoito anos completos. O primeiro GP seria dia dois de março, no Bahrein. Eu faço aniversário em fevereiro, então estaria dentro das normas da FIA para pilotar.

Isso se eu realmente quisesse arriscar.

Fiquei em silêncio, olhando para o lado e evitando contato visual.

- Tudo bem, Jac?

Neguei com a cabeça, cruzando os braços de jeito constrangido.

- Qual é o problema?

Ela já sabia. Só queria uma confirmação saída de mim.

- Não sei o que faço, Marilyn - Disse, um pouco choroso. - Não sei. Por quê isso está acontecendo?

Ela se ajeitou na cadeira, com cuidado para que as muletas encostadas na mesma não caíssem no chão. Mary nem as usava tanto no dia a dia, mas sempre as carregava em viagens longas e estressantes para não forçar seu corpo mais que o necessário.

- É porque você é bom - Ela colocou o croissant no prato. - O pessoal lá de cima finalmente notou o que você tem a oferecer a eles.

- Mas e quanto aquela questão? - Perguntei. - E se eu...

- O vovô não morreu, nem o papai e nem ninguém.

- Olhe para você - Retruquei, querendo adiar o veredito da questão. - Aquele dia em Suzu...

- Dane-se Suzuka! - Ela exclamou, de jeito que parecia querer começar a esfregar as coisas na minha cara. Eu deveria tomar cuidado com aquele croissant na posse dela, pois nunca se sabe. - E daí? Eu estou viva.

Ajeitei a gola da minha jaqueta de camurça, de jeito impaciente e autoritário. Ela podia ser marrom, mas combinava muito com a regata branca que eu usava por baixo.

- Não me olhe assim, cara - Ela disse, séria. - Eu só não estou dentro de um carro porque...

Perdi a paciência. Só queria encerrar aquela porcaria de assunto.

- Porque você se estatelou num bloqueio e ficou desse jeito - A interrompi, ríspido e brusco. - Tá okey!?

Quando prestei atenção ás palavras que haviam saído de minha boca, e no semblante magoado de minha irmã, me arrependi. Mas não dava para voltar atrás, e perceber que ela havia levado à sério o que eu tinha dito doeu.

Mary ficou em silêncio, atordoada.

- Me desculpe... eu... - Gaguejei.


Marilyn fez um gesto com as mãos, insistindo para que eu parasse, mas ela não disse nada.

- Eu só não quero que vocês passem por isso de novo - Murmurei, acatado.

Minha irmã suspirou profundamente, pegando as muletas e as colocando no colo.

- Você não quer preocupar mais ninguém.

Assenti.

- Me desculpe - Falei, arrependido. - Não foi minha intenção. Não quis te chatear.

- Tudo bem - Ela disse, sem graça. - Eu já causei sofrimento demais pra todo mundo. Entenderei se você querer recusar a vaga por causa disso.

Fiquei acuado, afundado na cadeira macia do restaurante de jeito taciturno.

Mary se debruçou sobre a mesa, ainda com as muletas no colo.

- Mas, se não fosse por isso, o que você faria?

Me senti desnorteado com aquela pergunta. O que eu faria antes, ou depois, daqueles dias em Suzuka?

A partir do momento que vi minha irmã sair do autódromo inconsciente em uma ambulância, os socorristas desesperados tentando reanima-la e, depois, a fratura exposta na perna dela, comecei a pensar nisso com força. Me lembrar das horas que ficamos no hospital esperando-a acordar do trauma, a corrida que foi reiniciada, eu sendo enfiado no cockpit à força pelo meu companheiro de equipe, que dizia que era o que Mary gostaria que eu fizesse... minha vitória no GP do Japão, sem ela para jogar champagne em mim ou me abraçar por trás enquanto eu estivesse sido entrevistado apenas para tentar me envergonhar.

Aquilo doía muito. Marilyn nunca mais havia sido aquela garota confiante e corajosa, mesmo que eu sentia que ela ainda estava lá dentro, batendo na mesma tecla, esperando o medo e o ressentimento passarem.

Não queria que ninguém sentisse aquilo de novo. Eu não queria passar pelas mesmas coisas que minha irmã. Não, não queria mais detrimento e desgaste.

Talvez, meu lugar fosse na Fórmula 2, assim sendo pelo resto de minha carreira.

- Ei, cara - Ela chacoalhou meu ombro, enquanto eu pensava em tudo. - Tudo bem!?

- Não, não tá nada bem - Respondi.

- Por favor, não fique triste - Mary pegou seu croissant pela metade e me ofereceu, faltando poucos centímetros para que o mesmo encostasse no meu rosto. - Tome isso. Pegue meu lanche. Vai te fazer mais feliz. Até parece que está doente... você não comeu quase nada hoje sem ser o café do hotel.

Olhei para o croissant, que quase raspava na minha cara.

- Não estou no clima, Marilyn.

Ela o colocou no prato novamente, e vendo que não teria como sair daquele assunto tão cedo, continuou:

- Jac... por favor - Minha irmã gesticulou. - Pense a respeito. Eu te amo, mas sei que te prender às amarras que o destino impôs a mim é tão errado quanto tentar fingir que as mesmas nunca existiram.

Fiquei em silêncio, com dificuldade de manter contato visual. Ela me falava isso como se fosse um adulto dando uma bronca em uma criança; convicta, mas carinhosa.

- Coincidências tristes, coincidências felizes... no fim, são apenas coincidências. Isso não significa que elas vão acontecer de novo.

Percebi que ela estava prestes a lacrimejar. Seu tom de voz mais fino e levemente trêmulo a denunciou.

- Só... só pense nisso. Quero te ver feliz, Jacques. Quando eu ir te assistir no paddock da Jameson, vai ser como se eu estivesse lá, correndo junto com você.

Uma lagrima desceu pelo meu rosto, devagar.

- Eu te amo, tudo bem? - Ela completou.

- Eu também - Respondi, choroso.

Marilyn sorriu. Vendo que ela estava melhor, e que estávamos nos entendendo melhor quanto ao assunto, me atrevi a confiscar seu croissant, apenas por teimosia. Na minha cabeça, parecia uma boa estratégia para nos distrairmos e mudarmos de assunto.

- Ei! Seu...

- Você me ofereceu - Falei com a voz ainda chorosa, mas com um quê de deboche. - Só quis pegar agora.

Ela riu.

- Te amo, minha irmã - Completei, de jeito terno. -, mesmo que às vezes não pareça.

𝐆𝐋𝐎𝐑𝐈𝐀 𝐄𝐌 𝐂𝐇𝐀𝐌𝐀𝐒 | Fórmula 1 [EM HIATO]Onde histórias criam vida. Descubra agora