– Hermes conseguiu dormir. – Comenta Dona Abigail saindo do quarto dela e se sentando ao lado do genro. — Parece um anjinho dormindo e foi uma dificuldade tirá-lo de baixo do chuveiro. A vida dessa criança não tem sido fácil.
– Verdade, minha sogra... meu filho é um herói... E, mais uma vez, muito obrigado por terem nos acolhido. A sopa estava deliciosa.
Dona Abigail segura as mãos do genro, que estão sobre a mesa, e diz:
– Por favor, meu filho, não nos agradeça por isso. Nós amamos você como a um filho. — Dona Abigail fala olhando bem nos olhos do genro e depois de uma leve pausa comenta: — Antônio, o nosso Hermes comeu tanto que deu fraqueza nas pernas. – Um sorriso de felicidade escapa da face o pai do menino ao escutar sua sogra comentar a presepada do neto com felicidade.
— E então... Foi maravilhoso vê-lo com a cara dentro do prato de sopa. — "Seu Antônio do Mercadinho" sorve um pouco mais do café amargo e um leve sorriso emoldura seu rosto queimado pelo sol.
— Lembre-se que vocês vieram para morar com a gente e não para passar um tempo. — Avisa Seu Tota depois de pousar sua mão esquerda no ombro do genro.
– É, sei disso. – Silêncio. As palavras querem sair, mas se recusam. Parece que tem uma bigorna em cima da língua do "Seu Antônio do Mercadinho" que sente-se mais leve sendo chamado apenas pelo seu primeiro nome ou por "meu genro". Voltar a ouvir seu nome de batismo lhe faz pensar que é uma outra pessoa... Um outro homem com um possível recomeço. Mas, o problema de Antônio está nas raizes de amargura que foram plantadas em seu coração. Os meses vividos nos silêncios dos lutos deixaram os gestos serem a sua principal fonte de comunicação. Os pais de Rute felizmente entenderam isso. – Olha, não se preocupem... na segunda vou começar a procurar emprego. — Fala Antônio, quebrando o silêncio.
– Tota já tem emprego fichado para você. — Dona Abigail comenta feliz.
Seu Tota, confirmando positivamente com a cabeça, diz:
— Exatamente, Antônio. Na segunda vou te levar para trabalhar de jardineiro na mansão dos Nabucos. Você vai gostar de lá. O salário não vai ser muito, mas, pelo menos estará fichado!
Antônio sorve mais do café amargo. O seu olhar marejado entrega para o casal todo o amor que sai de dentro de si.
— Filho, destranca esse coração. — Pede Dona Abigail, que recebe como resposta uma negativa com a cabeça.
Mas, para não ficar apenas com o gesto, Antônio responde:
— Não consigo... as palavras pesam demais dentro da boca. A minha mudez nasceu quando Jacozinho morreu de fome nos meus braços. — O menino era o filho primogênito de Rute e Antônio.
Silêncio.
— Amanhã bateremos um Ébó pra você. — Fala Dona Abigail olhando para o rosto do genro marcado pelos profundos vincos da pele desidratada.
— Não me queira mal, mas não quero nenhuma limpeza.
— Vai te ajudar, meu genro, e te fará sentir mais leve.
Antônio balança a cabeça levemente dizendo um "não", além de registrar um sorriso descrente, mas, sem desrespeito para com Dona Abigail.
Antônio sabe que seu problema não é contra sua família e sim contra todas as divindades que acreditou.
— Minha sogra, eles teriam que ter me ajudado lá atrás... quando meu primeiro filho, o Jacozinho, morreu... agora não quero gesto com nada que venha do outro lado, do céu ou do inferno.
— Não diga isso. — O pedido é suave e sem julgamento. Dona Abigail, nunca fora áspera antes quando poderia ter sido, quanto mais agora.
— Digo. Eu digo sim. Desculpa minha sogra, mas, nenhum deus me foi de valia. — Mais silêncio — E eu orei viu... eu fiz promessa até para o coisa-ruim. Num dia sangrei minha mão esquerda para Jesus Cristo e no outro sangrei a minha direita para o sete pele.
Antônio coloca mais café na xícara, rumina os pensamentos umedecendo os lábios e suspira em meio à tempestade dos seus pensamentos.
As lembranças lhe causam dores maiores do que câimbra nas duas pernas. Levantando a sobrancelha direita, Antônio continua:
— Eu tive por resposta o silêncio, a fome, a sede e a morte... essa sim, pense numa pessoa que foi fiel comigo... a bexiguenta não me deixou um só minuto, sugou a minha felicidade igual o carrapato no casco do boi.
Antônio afasta-se um pouco da mesa, recostando as costas na cadeira.
— A senhora sabe disso. A senhora esteve lá me ajudando a enterrá-los. Jacozinho morreu de fome, Ana foi de sede, Telminha de disenteria, Luciano e Antônia por causa da fome e da sede.
Lágrimas pulam de dentro dos olhos do homem descascado pela vida.
— E meu grande amor se matou. — Antônio junta sua face dentro das suas mãos e berra inaudível pelo seu choro compulsivo. Dona Abigail e Seu Tota abraçam o genro. — ELA FOI MAIS FORTE DO QUE EU! EU NÃO CONSEGUI... ME PERDOEM... EU NÃO CONSEGUI IR MAIS ELA! — Antonio chora mais entre os braços dos sogros — Tudo era demais... a fome era demais, a sede era mais que demais...
— Shhhh, calma. Estamos aqui, meu genro... amamos você... estamos aqui. — O casal abraça o genro, sem perceberem que mais alguém ouvia toda a conversa.
Talvez, aquela noite tenha sido a última vez que "Seu Antônio do Mercadinho" sonhou com aquele dia.
A imagem de dona Rute pendulando com a corda no pescoço, olhando para ele com os braços abertos o convidando a fazer o mesmo consigo e com Hermes, nunca mais se repetiu.
O desespero humano não deve ser julgado, medido ou entendido. O desespero leva uns a se agarrarem fielmente ao fio da vida, enquanto a outros ele corta o fio que os prendem.
Antônio dormiu à espera de um novo dia que chegou.
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SENHOR DA NOITE - Lançamento dia 04 de Abril de 2024
TerrorSENHOR DA NOITE "Yvi Sorrento nasceu numa data qualquer em um mês com nenhuma celebração, no calendário Espúrio." Foram essas frases que Eleonor de Medeiros, estudante de medicina da Universidade Federal de Pernambuco, leu na...