6 - CAFÉ AMARGO

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– Hermes conseguiu dormir. – Comenta Dona Abigail saindo do quarto dela e se sentando ao lado do genro. — Parece um anjinho dormindo e foi uma dificuldade tirá-lo de baixo do chuveiro. A vida dessa criança não tem sido fácil.

– Verdade, minha sogra... meu filho é um herói... E, mais uma vez, muito obrigado por terem nos acolhido. A sopa estava deliciosa.

Dona Abigail segura as mãos do genro, que estão sobre a mesa, e diz:

– Por favor, meu filho, não nos agradeça por isso. Nós amamos você como a um filho. — Dona Abigail fala olhando bem nos olhos do genro e depois de uma leve pausa comenta: — Antônio, o nosso Hermes comeu tanto que deu fraqueza nas pernas. – Um sorriso de felicidade escapa da face o pai do menino ao escutar sua sogra comentar a presepada do neto com felicidade.

— E então... Foi maravilhoso vê-lo com a cara dentro do prato de sopa.  — "Seu Antônio do Mercadinho" sorve um pouco mais do café amargo e um leve sorriso emoldura seu rosto queimado pelo sol.

— Lembre-se que vocês vieram para morar com a gente e não para passar um tempo. — Avisa Seu Tota depois de pousar sua mão esquerda no ombro do genro.

– É, sei disso. – Silêncio. As palavras querem sair, mas se recusam. Parece que tem uma bigorna em cima da língua do "Seu Antônio do Mercadinho" que sente-se mais leve sendo chamado apenas pelo seu primeiro nome ou por "meu genro". Voltar a ouvir seu nome de batismo lhe faz pensar que é uma outra pessoa... Um outro homem com um possível recomeço. Mas, o problema de Antônio está nas raizes de amargura que foram plantadas em seu coração. Os meses vividos nos silêncios dos lutos deixaram os gestos serem a sua principal fonte de comunicação. Os pais de Rute felizmente entenderam isso. – Olha, não se preocupem... na segunda vou começar a procurar emprego. — Fala Antônio, quebrando o silêncio.

– Tota já tem emprego fichado para você. — Dona Abigail comenta feliz.

Seu Tota, confirmando positivamente com a cabeça, diz:

— Exatamente, Antônio. Na segunda vou te levar para trabalhar de jardineiro na mansão dos Nabucos. Você vai gostar de lá. O salário não vai ser muito, mas, pelo menos estará fichado!

Antônio sorve mais do café amargo. O seu olhar marejado entrega para o casal todo o amor que sai de dentro de si.

— Filho, destranca esse coração. — Pede Dona Abigail, que recebe como resposta uma negativa com a cabeça.

Mas, para não ficar apenas com o gesto, Antônio responde:

— Não consigo... as palavras pesam demais dentro da boca. A minha mudez nasceu quando Jacozinho morreu de fome nos meus braços. — O menino era o filho primogênito de Rute e Antônio.

Silêncio.

— Amanhã bateremos um Ébó pra você. — Fala Dona Abigail olhando para o rosto do genro marcado pelos profundos vincos da pele desidratada.

— Não me queira mal, mas não quero nenhuma limpeza.

— Vai te ajudar, meu genro, e te fará sentir mais leve.

         Antônio balança a cabeça levemente dizendo um "não", além de registrar um sorriso descrente, mas, sem desrespeito para com Dona Abigail.

Antônio sabe que seu problema não é contra sua família e sim contra todas as divindades que acreditou. 

— Minha sogra, eles teriam que ter me ajudado lá atrás... quando meu primeiro filho, o Jacozinho, morreu... agora não quero gesto com nada que venha do outro lado, do céu ou do inferno.

— Não diga isso. — O pedido é suave e sem julgamento. Dona Abigail, nunca fora áspera antes quando poderia ter sido, quanto mais agora.

— Digo. Eu digo sim. Desculpa minha sogra, mas, nenhum deus me foi de valia. — Mais silêncio — E eu orei viu... eu fiz promessa até para o coisa-ruim. Num dia sangrei minha mão esquerda para Jesus Cristo e no outro sangrei a minha direita para o sete pele.

Antônio coloca mais café na xícara, rumina os pensamentos umedecendo os lábios e suspira em meio à tempestade dos seus pensamentos.

As lembranças lhe causam dores maiores do que câimbra nas duas pernas. Levantando a sobrancelha direita, Antônio continua:

— Eu tive por resposta o silêncio, a fome, a sede  e a morte... essa sim, pense numa pessoa que foi fiel comigo... a bexiguenta não me deixou um só minuto, sugou a minha felicidade igual o carrapato no casco do boi.

Antônio afasta-se um pouco da mesa, recostando as costas na cadeira.

—  A senhora sabe disso. A senhora esteve lá me ajudando a enterrá-los. Jacozinho morreu de fome, Ana foi de sede, Telminha de disenteria, Luciano e Antônia por causa da fome e da sede.

Lágrimas pulam de dentro dos olhos do homem descascado pela vida.

— E meu grande amor se matou. — Antônio junta sua face dentro das suas mãos e berra inaudível pelo seu choro compulsivo. Dona Abigail e Seu Tota abraçam o genro. — ELA FOI MAIS FORTE DO QUE EU! EU NÃO CONSEGUI... ME PERDOEM... EU NÃO CONSEGUI IR MAIS ELA! — Antonio chora mais entre os braços dos sogros — Tudo era demais... a fome era demais, a sede era mais que demais...

— Shhhh, calma. Estamos aqui, meu genro... amamos você... estamos aqui. — O casal abraça o genro, sem perceberem que mais alguém ouvia toda a conversa.

Talvez, aquela noite tenha sido a última vez que "Seu Antônio do Mercadinho" sonhou com aquele dia.

A imagem de dona Rute pendulando com a corda no pescoço, olhando para ele com os braços abertos o convidando a fazer o mesmo consigo e com Hermes, nunca mais se repetiu.

O desespero humano não deve ser julgado, medido ou entendido. O desespero leva uns a se agarrarem fielmente ao fio da vida, enquanto a outros ele corta o fio que os prendem.

Antônio dormiu à espera de um novo dia que chegou.

SENHOR DA NOITE - Lançamento dia 04 de Abril de 2024Onde histórias criam vida. Descubra agora