A poeira comia literalmente os copos dos que estavam em cima daquela camionete Ford 4000, que tinha uma lona laranja encardida cobrindo todos ali, da morte vinda do céu.
Uma coisa é o corpo coberto de poeira, outra coisa é a poeira ser tão seca que molda uma segunda pele no corpo rachado dos que vivem ali.
Umas vinte e cinco pessoas estavam exprimidas na boleia da Ford 4000... e isso tornou-se uma rotina perigosa. Não somente a diáspora nordestina em meio a seca, mas, as superlotações nos Paus de Araras.
O ano era 1971.
A seca não havia somente bebido toda água, mas, sugado milhares de almas do sertão de Pernambuco.
A seca arrastou tudo na enchente de ossos secos.
Os pernambucanos estavam vivendo uma das piores secas já vista. Enquanto o Brasil estava vivendo a secura na sua democracia, os nordestinos lutavam para não serem engolidos pelas sepulturas cheias de ossos de crianças, homens, mulheres e animais.
A seca começada em 1970 e que se perpetuou com ferocidade até 1983, alcançou mais de 2 milhões vidas nordestinas, impactando-os na pobreza extrema, e fazendo os pernambucanos seguirem para a capital Recife ou para outras capitais da federação.
Esse período foi chamado de "O Genocídio do Nordeste."
E esse título foi dado pelo total descaso de todas as políticas da época. Havia os escritórios dos políticos da seca.
Não havia interesse político em resolver a situação. Somente uma nação de nordestinos enterrando seus nordestinos.
As promessas de melhores dias serviam como troca de votos. Onde os políticos davam esperança com a mão direita e puxavam com a outra. A nota de três dólares era falsa quando vinha para a mão do povo... na mão dos políticos virava milhões.
Sim, houve o Genocídio do nordestino provocado pela falta de chuva e pela falta de ações políticas contra a morte vinda da abastança do sol a pino.
Carro pipa não foi solução, mas uma lente de aumento dentro de uma peneira apontada para o sol queimando os sonhos de quem vivia da terras.
Quanto mais carros pipas, mais Paus de Araras.
Quanto mais Paus de Araras levando o povo embora, mais terras sendo compradas a troco de banana.
E por que não lutaram mais?
Você já sentiu a sede que queima o céu da boca? Você se imagina não ter saliva nem para cuspir? Você alguma vez bebeu os últimos pingos do próprio mijo para tentar aplacar a ira da deusa Morte? Sua vista já ficou turva porque o calor está tão sufocante, comprimindo sua cabeça e te deixando um enfado que te obriga a não querer lutar para ficar vivo? Você matou sua sede com o sangue do seu Pet? E comer o que? Se sua comida vem do chão e dos animais esqueléticos espalhados pelo chão amarelo defunto.
Você conseguiria lutar contra isso?
As lágrimas não conseguiam cair dos olhos secos do "Seu Antônio do mercadinho" — Isso mesmo. O primeiro nome juntado onde a pessoa trabalha ou vive, vira o nome próprio. Logo, Antônio Aparecido de Souza, virou "Seu Antônio do mercadinho." —, embora sua tristeza fosse autodestrutiva.
"Seu Antônio do mercadinho" enterrou cinco dos seus 6 filhos mais a mãe deles. O que restara estava bem ali na sua frente. O menino de seis anos de idade, chamado Hermes de Souza... Era o menino que o fazia correr na direção oposta do auto-extermínio.
O significado do nome da criança, naquele exato momento, era uma piada vil e maligna.
Hermes estava na frente do pai, os dois em pé, igual a todos que estavam em cima do Pau de Arara, o menino olhava firme para o lado, vendo a terra morta passar a 60 Km/h.
"Seu Antônio do mercadinho" pensou que daria tudo que não tem para saber o que passava na cabeça do seu filho, que estava envolto pelo seu braço esquerdo, enquanto segurava no trilho de ferro sobre suas cabeças com a mão direita.
A placa "Lagoa do Taperé" deseja um excelente regresso. Boa viagem e voltem sempre" na saída da cidade, faz "Seu Antônio do mercadinho" soltar um suspiro longo... daqueles que passam o filme da sua vida em três segundos.
O coração do homem virou uma pedra quando seu rosto sentiu a brisa quente da BR 45, "Seu Antônio do mercadinho" lembrou-se que não poderia existir um deus nos céus ou em qualquer outra localidade.
E suas orações disse a si mesmo que a sua fé não passaria da placa da sua cidade... e de fato ele a deixou enterrada ali, juntamente com sua mulher e seus cinco filhos.
![](https://img.wattpad.com/cover/344079370-288-k625973.jpg)
VOCÊ ESTÁ LENDO
SENHOR DA NOITE - Lançamento dia 04 de Abril de 2024 - Em Andamento
TerrorSENHOR DA NOITE "Yvi Sorrento nasceu numa data qualquer em um mês com nenhuma celebração, no calendário Espúrio." Foram essas frases que Eleonor de Medeiros, estudante de medicina da Universidade Federal de Pernambuco, leu na...