Segunda-feira. Naquele exato momento, Ulisses esperava a resolução de exercícios por seus alunos. Enquanto isso, lia algo de José Saramago. Era grande fã de José Saramago.
Sorrisos sutis se projetavam em seu rosto a cada graça. Partia os lábios e erguia as sobrancelhas suavemente a cada sentença escrita de forma inteligente. Em sua mente, torcia para os alunos demorarem mais um pouco com suas atividades. Quando se envolvia em um livro, era difícil e irritante para ele desviar sua atenção para o novo assunto. Tão atento a sua leitura, mal sabia Ulisses que tinha um admirador secreto.
Rafael deitou a cabeça contra a palma da mão, não tirando os olhos do homem. Sua mão direita, que deveria estar solucionando os problemas da desgraçada da Matemática, rabiscava a página do livro sem rumo. Diferente de Ulisses, seu sorriso era muito mais indiscreto. Corações hipotéticos flutuavam ao redor de sua cabeça à medida que sua consciência divagava em direção à pensamentos mais nítidos e lúcidos. Admirava cada movimento gracioso. Oh, como adoraria ser abraçado por aqueles braços fortes e cabeludos...
-- Pode ir ao banheiro, Rafa. Não vou te julgar -- zombou Patrícia, bem ao lado do amigo.
A voz da garota interceptou a viagem na maionese de Rafael. Ele logo ajeitou a postura, sentindo o rosto esquentar. Olhou para o próprio livro e surtou internamente. O grafite cobria boa parte das contas redigidas no papel.
-- Égua! -- exclamou um pouco alto demais. Seus colegas riram.
-- Silêncio -- ordenou Ulisses -- Façam seu dever aí.
A turma respondeu com diversos "ui". O professor preferiu ignorá-los e tentou voltar à página que lia. Tinha o mesmo nível de amor à profissão que Emília, Karla e Sofia, suas colegas. A única diferença é que ele, pelo menos, sabia dar aula. E como sabia.
-- Isso que dá ficar sonhando com o professor -- sussurrou Patrícia, entre risadinhas.
Rafael percebeu que sua amiga desenhava algo no caderno. Nada relacionado a Matemática, certamente.
-- É a suja falando do mal lavado -- virou o corpo todo em direção a Pat, cruzando as pernas.
-- Diferente de você, Rafael, eu já terminei o dever -- mostrou o livro para o amigo. Apontou para a assinatura de Ulisses, inscrita com uma caneta vermelha.
O rapaz bufou e sentou direito na cadeira, arrancando um sorriso brincalhão de Patrícia. Pegou uma borracha em seu estojo e começou a apagar a bagunça que fez.
-- Desenhas o quê? -- questionou Rafael, desviando o olhar para o caderno de Pat.
-- Lembrei do que a Júlia falou sexta-feira -- ela respondeu -- Talvez eu possa arranjar uma fantasia nesses 4 dias que restam para a festa.
-- Que legal! -- Rafael inclinou-se em direção à mesa da amiga.
Algumas coisas foram desenhadas na folha do caderno. Majoritariamente, rabiscos sem sentido, poliedros e polígonos bizarros. Todavia, em meio à toda a maluquice, havia um desenho interessante: um corpo sem face, mãos ou pés. Mesmo sem componentes essenciais para o organismo humano -- sem querer, claro, excluir as pessoas cujos membros foram amputados -- a criatura vestia um belo terno, listrado verticalmente. Além dele, o cabelo do ser possuía um tom esverdeado -- pintado por um lápis deveras vagabundo -- e os cachos eram um pouco desgrenhados.
-- Isso seria...?
-- Besouro-suco. Beetlejuice -- Patrícia olhou para o amigo confuso -- "Os Fantasmas Se Divertem"! Nunca assistiu esse filme?
-- ... se eu disser que não, você vai me achar uma pessoa inculta? -- elevou o dedo indicador, questionador.
-- Relaxa -- riu -- Você não é obrigado a conhecer um filme de 1988. Mas recomendo que assista. É divertidinho. É do Tim Burton.
Interessado, Rafael acenou com a cabeça.
Ulisses se levantou de sua cadeira. Intencionava explicar as questões passadas aos alunos pelo livro, contudo o alarme que anunciava o intervalo soou. Os jovens comemoraram e o professor suspirou, pegando suas coisas e saindo da sala. Rafa não tirou os olhos do homem até que ele estivesse fora do cômodo, sua movimentação discreta sendo hipnotizante. A cara de imbecil do adolescente providenciou-lhe um afiado baque atrás de sua cabeça. Dolorido, grunhiu e resmungou enquanto Patrícia gargalhou.
-- Depois não sabe porque apanha -- Júlia arrastou a mão pela calça.
-- Vai se ferrar -- Rafael esfregou a mão pelo couro cabeludo atingido pela menina -- Quando você fica enchendo o saco da... -- notou a garota dar a volta pelas carteiras visando se posicionar ao lado de Pat -- quando você fica enchendo o saco da Pat, eu não digo nada -- resmungou.
-- Desenhando o quê?
Patrícia encolheu os ombros. Embaraçada, tentou cobrir os desenhos aleatórios -- polígonos e poliedros bisonhos -- com as mãos.
-- Bem, pensei no que a gente conversou sexta-feira sobre fantasias e... e eu tive uma ideia.
-- Dá pra ver... "Os Fantasmas Se Divertem"?
-- Você viu esse filme?! -- seus olhos brilharam como o céu estrelado no deserto.
-- Sim -- afirmou Júlia -- Não é nenhum "Pulp Fiction", mas é legal.
-- Virou cinéfila, Ju? -- caçoou Rafael.
-- Gosto de consumir bom conteúdo -- deu de ombros.
-- Embora tenham uns filmes que eu particularmente achei superestimados -- confessou Patrícia -- "O Poderoso Chefão", "Meu Primeiro Amor"...
-- "Meu Primeiro Amor"? Esse filme é mó bonitinho! -- Rafa parecia decepcionado.
-- As pessoas têm opiniões diferentes, Rafael -- lacrou.
O rapaz fez cara feia com sua pior atuação possível e Pat riu. Júlia relaxou a postura, admirando a outra garota. Aquele sorriso era lindo. O jeito que sua respiração criava um ritmo jocoso por si só fazia o coração da nipo-brasileira bater com um afeto a mais.
-- Devíamos assistir um filme algum dia... -- sugeriu Júlia, pensando somente em Patrícia.
-- Boa ideia! -- a jovem não pensou na oportunidade de um encontro romântico -- Daí a gente pode mostrar "Os Fantasmas Se Divertem" pro Rafa!
O sorrisinho sugestivo de Júlia afrouxou-se. Rafael até quis rir, porém se conteve ao ver o olhar mais rígido da colega. Não queria levar três porradas como consequência.
-- Pode ser! -- a moça conseguiu abrir outro sorriso -- A gente põe o Rafael nessa história -- um sorriso meio forçado.
-- Sim, sim! -- levantou-se Patrícia da própria cadeira -- Mas só depois do trabalho que fizermos. Tudo bem, Júlia?
Júlia acenou com a cabeça. Não era bem o que tinha em mente, mas serviria. Com sorte, daria um jeito de se livrar de Rafael quando necessário.
-- Ótimo. Agora acho melhor irmos pro intervalo. Ficamos um bom tempo aqui -- Pat pegou a lancheira e olhou o horário no celular.
-- Égua, não -- Rafael se ergueu depressa e vasculhou sua mochila em busca do dinheiro na mesma velocidade -- Vamos logo antes que eu fique sem comer -- saiu disparado.
Patrícia riu mais uma vez e seguiu-o. Júlia pensou em alcançá-la e caminhar bem a seu lado, todavia escolheu confiar em seu próprio ritmo. Não estava com pressa, teria muito tempo para passar com sua paixão, ainda.
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Mais Um Triângulo Amoroso Idiota (SAPPHIC EDITION!!!!!!!)
RomanceMelissa Montenegro e Júlia Watanabe são bastante diferentes: uma é uma patricinha, filhinha de mamãe e arrogante; enquanto a outra é uma gótica que vive se encrencando com qualquer ser vivo que a incomode. Por conta dos interesses distintos, elas se...