A luz falhou mais uma vez, atrasando a concretização da linha que Vinícius pensava em fazer. Geralmente, ele podia fazer qualquer coisa, mas imitar os colegas o deixava receoso e desanimado, com poucos avanços em sua tarefa além de olhar cabisbaixo para o papel em branco desde que a noite tinha chegado.
A televisão já estava desligada há horas; no lugar dela, as quedas de energia e os trovões haviam se tornado o obstáculo para sua concentração.
Mais cedo, a chuva não havia alcançado Sara e ele, mas, pouco depois de devidamente abrigados, a água caiu do céu com uma fúria desconhecida, como se pretendesse deixar tudo no nível do solo, dissolvendo montanhas e casas em uma única inundação.
- Tudo bem? - Preocupada, a avó surgiu atrás dele, olhando para o neto jogado no chão da sala entre papéis e lápis. - Se estiver com medo dos relâmpagos, pode ficar na cozinha. Já vamos jantar.
Vinícius olhou para Roxane. Não dava para dizer quem mais temia que o telhado acima deles fosse arrancado, se ele ou ela.
- Vovó.
- Sim?
- Como é meu pai? - O menino se ergueu e ficou com as pernas cruzadas sobre o tapete.
A mulher engoliu em seco.
- Por que a pergunta?
- É que mamãe disse que é para eu fazer os desenhos parecidos com o dos meus colegas, mas todos fizeram desenhos dos pais e eu não sei como é o meu.
- Bom, olha... Seu pai... Ele era alto, tinha os cabelos claros e quase cacheados como os seus e também tinha olhos azuis. Não é o suficiente?
- Sim. É que eu fiquei curioso. Será que minha outra avó e meu avô podem me dar uma foto?
- Certamente, querido. Assim que eu os vir vou pedir uma para você. Pode deixar. Agora, se quiser ir para a mesa, vá. Não fique nesse chão duro muito tempo. - Roxane deu meia volta e saiu pisando miúdo para a cozinha. - Ele já falou com você? - Aspergindo as palavras no ar, passou pela filha, que provava um molho.
- Quem?
- Vinícius - disse ela, pegando uma faca para terminar de cortar as verduras. - Ele falou que queria uma foto do pai para um desenho.
- E o que você falou?
- Que iria falar com os avós dele.
Sara ficou um minuto olhando para a mãe.
- Você vai?
- Creio que você é quem decide, não? Afinal, esse era seu plano ao voltar para cá, não era?
- Eles não gostam de mim.
- Eles têm medo de você. É diferente - Roxane falou mais baixo, olhando em direção à sala. - Não se sentem bem. Nunca se sentiram.
A mãe de Vinícius olhou para as panelas, não necessariamente preocupada com o chiado ou com as bolhas se formando na mistura.
- Termine aqui, por favor. Eu já volto. - Ela deixou a colher e andou para o quarto, hesitando por um instante e depois voltando para a direção certa, como se os ventos que açoitavam as paredes pelo lado de fora a empurrassem.
Fechou a porta e se sentou na cama, fitando a tintura da parede, em um ponto próximo à janela fechada com clarões espreitando pelas frestas.
Não foi preciso esforço para o barulho dos trovões a conduzirem para longe feito uma canção de ninar.
De repente, tudo estava se embaçando e fazendo ressurgir à sua frente aquele dia ofuscado pela branquidão com a qual a pacata cidade de Defrim estava vestida.

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Rabiscos
Mystery / ThrillerEnzo Damasceno precisa retornar à sua cidade natal para cuidar do filho que ele não conhecia após o menino ficar órfão de mãe. O talento extraordinário que a criança demonstra ter irá se somar aos desafios naturais da paternidade.