ONZE

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 – Então... – Cristina dissecou as camadas de queijo e molho de carne com um corte que terminou com o barulhinho da faca chocando-se contra o prato. Não sabia o que esperar de um convite de Enzo para um jantar de última hora, mas a lasanha servida estava sendo uma deliciosa surpresa. – Na maioria das vezes, Vinícius só reproduz o que vê enquanto vê ou ele guarda tudo na memória?

– Em se tratando de desenhos, ele tem uma ótima memória, como você viu. Ele desenhou o rosto da mãe e a fachada da casa com detalhes mesmo depois de um tempo sem vê-las.

– Ela é uma das vítimas do tornado?

– Sim. Meus pais também. – Enzo, sentado ao lado, olhou para algum ponto da toalha de mesa. – Eles estavam voltando de carro de uma feira de flores nos limites da cidade. Já a mãe do Vinícius estava em casa com ele e a mãe dela. Enfim, muitas perdas. Mas o garoto e eu temos um ao outro agora, não é, amigão?

Vinícius assentiu do outro lado da mesa, as bochechas infladas de comida.

– Eu estava na faculdade quando ele nasceu. Depois das tragédias, voltei a Defrim, o conheci e vi que ele era mais especial do que imaginava.

– Deve ter sido uma surpresa e tanto. – Sentada à cabeceira, Cristina podia observar o anfitrião com a visão periférica. Às vezes, virava o rosto para os braços e mãos dele, disfarçando um pouco a fuga do contato visual.

– Sim. Quando ele desenhou o retrato da mãe e o meu, fiquei boquiaberto. Perguntei sobre isso e ele falou que ninguém o ensinou a desenhar. Aprendeu sozinho.

– É verdade – confirmou Vinícius.

– Quando conversei com a diretora e a professora sobre o caso, decidimos manter segredo por enquanto. Para manter a privacidade do garoto.

– E o pátio e os quadros?

– Ah, foram ideias de Dona Odete, diretora e proprietária da escola. Ela achou que um muro pintado por Vinicius faria bem às crianças. Como deu muito certo, ela sugeriu os quadros para o leilão beneficente – disse Enzo e, depois que Cristina evitou seu olhar, como se temesse transparecer alguma coisa, emendou: – Mas não quero que pense que... Sei lá... Que Vinícius tenha sido explorado ou coisa assim. Ele desenhou tudo com extrema facilidade e satisfação. Foi como uma grande brincadeira.

– Claro! – disse ela. A palavra exploração lhe parecia um exagero, por mais que não pudesse tirar da equação o quanto a diretora estaria agradecendo aos céus por aquele marketing. – Mas não gerou nenhum tipo de comentário ou curiosidade por parte das pessoas?

– O pessoal da escola está sabendo lidar com tudo e foi por uma boa causa, não é, filho?

– Sim – disse Vinícius. – A professora falou que os quadros iriam ajudar muita gente.

– Como foi pintar aquilo tudo nos muros do pátio? – Cristina se virou para ele.

– Eu só fiz os desenhos. Tia Odete chamou pintores para pintar. Mas eu escolhi as cores e pintei algumas coisas.

– Você criou aquele jardim todo na sua cabeça ou viu em algum lugar?

– Eu criei tudo.

– Uma bela imaginação a sua. O que mais você faria para deixar a escola mais bonita?

O menino pensou um pouco.

– Vou mostrar – disse ele, abandonando os talheres.

– Terminou toda a sua lasanha? – perguntou Enzo.

– Terminei.

– Não se esqueça de lavar as mãos, entendeu?

– Entendi. – Vinícius se esgueirou por entre a cadeira e a mesa e saiu pela entrada da sala de jantar.

– Você cuida muito bem dele – disse Cristina, quase sentindo o olhar de surpresa de Enzo sobre ela logo em seguida. – Ele parece feliz com você.

– A professora dele, Daniela, comentou alguma coisa sobre isso outro dia. Ela é psicopedagoga e tem nos ajudado sobre os desenhos e o processo de luto. Eu sempre procuro ouvi-lo e ajudá-lo a entender e lidar com o dom que possui, para dar o melhor para ele, sabe? É o mínimo que posso fazer.

Enzo olhou contrito para o prato, e Cristina, olhando enviesadamente para a cabeleira castanha, ficou quieta, dando tempo ao olhar perdido do acompanhante no jantar.

Vinícius voltou antes que o silêncio começasse a se tornar constrangedor. O garoto abriu o caderno e mostrou sua própria versão da escola, com cores mais claras, diferente dos tons azulados originais.

Antes que abaixasse o olhar para não ter a visão embaçada novamente, Cristina percebeu que a estrutura da fachada da escola também estava diferente, os acabamentos mais rebuscados e arredondados, flertando com o barroco. Como ela havia dito, o menino tinha uma bela imaginação.

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