Aquela que seria a manhã mais fria dos últimos meses em Defrim permanecia escura com as sombras remanescentes da madrugada. Ainda assim, as horas não podiam ser congeladas, e Enzo precisava se levantar no horário prescrito, vestir um casaco e se preparar para convencer o filho a sair dos cobertores e se arrumar para a escola.
Após terminar de preparar o café e pôr os sanduíches na lancheira de Vinícius, bateu na porta de seu antigo quarto para avisar que estava entrando, pegou na maçaneta e abriu. Ver que não precisaria lidar com o sono do filho provocou mais surpresa que alívio. A luz estava acesa e havia muitos papéis espalhados pelo chão, vazando da cama onde o garoto estava começando o dia a todo vapor.
Enzo deixou a porta aberta e moveu os pés com cuidado, de modo a não pisar em nenhum dos desenhos que pavimentava o piso. Pelo caminho até a cama, eram vistos rostos inexpressivos e corpos infantis suspensos no branco, alguns com asas e com rabiscos furiosos ao redor, como se fossem cometas queimando em cores vivas pelo céu.
– Vinícius, há quanto tempo está desenhando? – Ele se aproximou. – Não me diga que passou a noite acordado.
O garoto interrompeu o manuseio do lápis amarelo apenas o suficiente para uma olhada rápida para o pai.
– Eu não passei a noite acordado – respondeu o menino com um ligeiro sorriso. – Eu acordei depois de sonhar com o que vi na escola e comecei a desenhar para não esquecer.
– Sonhou com seus colegas? – Enzo olhou para as crianças jogadas em volta dos dois.
– Sonhei com o que eles sonharam.
Enzo olhou para os papéis sobre a colcha mal alinhados e voando para o chão a cada movimento mais brusco do menino.
– Por que as asas? Tem algo a ver com a sua pergunta ontem sobre o anjo?
Vinícius o olhou.
– Acho que fiz mal a eles, papai. – Havia uma pontada de temor na voz.
– Não vejo como você poderia fazer mal a alguém.
– Depois que voltamos daquela casa, fiz uma cópia do quadro em uma página do meu caderno, mostrei para os meus colegas e eles ficaram estranhos.
– Como assim?
– Eles viram o desenho e na hora do recreio ficaram que nem bobos, sem brincar com ninguém. Na aula, ficaram normais e ouvi que sonharam acordados com redemoinhos de cores que desmanchavam tudo o que viam.
Enzo sentiu um calafrio penetrar o casado e eriçar seus pelos.
– Em que lugar eles ficaram bobos e sonhando acordados?
– No pátio – disse o menino.
– Onde estão seus desenhos – completou o pai, a voz de Cristina ecoando em sua mente. – Você pode me mostrar a cópia que fez?
Vinícius largou o lápis, tirou a folha do caderno e pôs ao lado das outras soltas na cama, completando o que seria um recreio reproduzido por suas mãos. Levantou uma das capas e tirou de baixo um papel dobrado ao meio, com um desenho oculto na parte interna.
– Não vai acontecer nada comigo. Não se preocupe – disse Enzo, vencendo as dúvidas que embargavam sua garganta. Ele ficou olhando para o filho, que hesitava com o desenho entre os dedos. O papel foi erguido, segurado pelas duas mãozinhas e dividido em duas partes, depois em mais duas e assim por diante até se transformar em um punhado de confetes caindo sobre a cama e sobre o piso.

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Rabiscos
Tajemnica / ThrillerEnzo Damasceno precisa retornar à sua cidade natal para cuidar do filho que ele não conhecia após o menino ficar órfão de mãe. O talento extraordinário que a criança demonstra ter irá se somar aos desafios naturais da paternidade.