De olhos fechados, Enzo chegou aos pés da parede, levantou os braços e tateou a superfície até pôr as mãos na borda inferior da pintura. Sentiu o peso ao tentar erguer. Bastaria virá-la ou colocá-la em um armário escuro. Talvez uma camada de tinta preta fosse capaz de sufocar de uma vez por todas a assombração que nela habitava. Fora isso, o fogo era a única alternativa que avistava de imediato para solucionar o caso.
Fez mais um pouquinho de força e percebeu que estava tirando do prego. O peso estava completamente em suas mãos, conservando-se em um equilíbrio delicado. Seus músculos tencionaram. No espaço de um átimo de tempo, acreditou que o quadro iria cair sobre ele. A obra de arte oscilou brevemente e se encaixou de novo na parede, mas o susto tinha sido suficiente para Enzo abrir os olhos e receber o impacto da visão do anjo.
Ele soltou a moldura e se afastou com o rosto congelado. Não conseguia mais se desviar, fisgado e sem voz. Estava no meio da sala quando parou, não podendo mais fazer nada, além de encarar o anjo que dirigia uma fúria amarga para o alto.
A visão de Enzo devia estar apresentando sinais de cansaço, porque teve a impressão de ver o rosto se movimentar, a tinta escorrer, fresca e maleável. Mas não era um engano. A face angelical estava mesmo olhando para ele e contagiando a sala inteira com aquela realidade fluida.
Em meio aos floreios, um risco formou um bigode fino em Lúcifer, o cabelo se repartiu e o rosto afinou. De repente, Enzo estava vendo criador e criatura em sintonia. Cícero se formou por completo, distinguível do anjo atrás, virou as costas e levantou o braço direito, movendo a mão como se pintasse. A preocupação em entender o pai da mentira para representá-lo era patente nas pinceladas que nasciam na tela e se propagavam pelo ambiente, o desejo do artista literalmente dando vida à obra e transformando os dois em um só.
Enzo se moveu para trás e, assim, notou que possuía uma margem de liberdade naquele universo etéreo, podendo flutuar sua visão para os lados e alcançar o que estava além das paredes, desbotando-se e ressurgindo, semelhante ao chamejar de cores e traços.
Ele viu Cristina sentada no sofá, em meio à tormenta impressionista que a afastava da beleza sempre que a via, exatamente como dissera no jardim, e não deixou de se sentir mais próximo a ela, todos compartilhando do suplício que emanava do quadro, aquela impossibilidade de enxergar a harmonia, a rejeição de tudo que podia elevar o espírito para a Fonte da Grandeza.
Acima deles, Inácio e Cíntia pareciam dois corpos boiando em alto mar. Podiam vê-lo como ele os via? Enzo não tinha certeza. Nos outros aposentos, Ruan parecia sonhar com coisas agradáveis e Leila abria a janela para o jardim, também mergulhados na inundação de tonalidades e formas volúveis.
A visão foi mais longe e ele divisou Guto no leito de hospital. A composição em aquarela mudou quando Enzo se concentrou em outro ponto, e a cena que se formou em seguida mostrava uma criança sozinha, olhando para uma árvore no que parecia ser um quintal ou um parque. Não muito longe, uma menina era carregada por um adulto aflito. Os traços de tinta fluíram e fizeram aparecer um menino em um carro e outro na cama.
Enzo tentou gritar para as figuras se perdendo nos delineamentos borrados como uma ofuscada constelação de almas, mas naquele mundo só se via, não se ouvia. Tentou focar no que estava mais perto dele e viu Cícero pintando o quadro, cada movimento agitando os contornos do ambiente, como o vento farfalhando a relva.
Moveu os lábios em vão. Nada saia de sua boca, e o homem à sua frente não se importava com sua presença, preferindo continuar tecendo a prisão do anjo na qual prendia a si próprio e aos demais. Enzo esboçou alguns passos e não conseguiu se aproximar. Ao invés disso, tudo se distanciava ainda mais, ficando mais tênue, as cores se desbotando, escurecendo.

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Rabiscos
Mistero / ThrillerEnzo Damasceno precisa retornar à sua cidade natal para cuidar do filho que ele não conhecia após o menino ficar órfão de mãe. O talento extraordinário que a criança demonstra ter irá se somar aos desafios naturais da paternidade.