À noite, estavam ambos sob a luz de um lustre, e o garoto desviava a atenção de seu prato para a peça de cristal suspensa sobre a mesa da sala de jantar.
– Não olhe demais para a luz, campeão. Vai doer sua vista – disse o pai, esticando o braço para passar os dedos pelos cabelos do filho sentado na cadeira vizinha. – Termine logo para ganhar a sobremesa. Adivinha qual é.
– Sorvete! – disse Vinícius, fechando a mão em volta do cabo prateado da colher.
Na cabeceira da mesa, ao lado dos dois, Raul examinou o irmão mais novo. Até há pouco tempo, a criança jantando com eles não passava de uma pensão, uma despesa imposta após um deslize da juventude, não um ser de carne e osso que falava e precisava de ajuda com os talheres.
– Parece que leva jeito para a coisa. – Indicou com um gesto o novo membro da família.
– Tenho disposição para a coisa, melhor dizendo – respondeu o mais novo. – Nada como um pouco de esforço, não é?
– Será suficiente? – completou Raul, antes de abocanhar o garfo com macarronada e puxá-lo dentre os dentes.
– Sou grandinho o suficiente para saber que a paternidade não é fácil, ainda mais para um solteiro – disse Enzo, rejeitando o papel de eterno adolescente preguiçoso que o irmão gostava de lhe imputar, embora a diferença de idade entre eles fosse de apenas quatro anos. – Mamãe estava orgulhosa de ver como eu estava me cuidando bem na faculdade.
Raul olhou para a cabeceira oposta da mesa e imaginou o pai ali, ao lado de Amélia, os dois conversando sobre o filho que estava estudando fora ou sobre o temperamento de juízes locais sobre os quais Otto insistia em falar durante as refeições. Mas tudo o que ocupava as cadeiras, no momento, era a ausência palpável, fabricada por um estúpido tornado que os surpreendera na estrada enquanto voltavam de uma mostra de rosas no limite noroeste de Defrim.
– De fato, mamãe gostava de quem sabia se cuidar. Ela mesma cuidava dessa casa sozinha, apesar de eu sempre recomendá-la que contratasse alguém. Você deveria fazer isso. O menino precisa de uma babá.
– Vou ver isso. Agora estou pensando em arrumar um emprego primeiro e reaver meu carro que está em revisão na oficina.
– Ah, sim... O famigerado carro.
– O que é famigerado, papai? – Vinícius se virou para Enzo.
– Uma coisa não muito bem vista. Mas não veja o carro como coisa ruim. Esqueça – disse o pai, embora ainda se esforçasse para seguir a própria recomendação.
O automóvel era um belo utilitário esportivo preto que os pais lhe presentearam antes de ir para a faculdade e que tomaram de volta ao saberem da gravidez de Sara, tornando-se uma espécie de símbolo de castigo e decepção.
– Eu vou reaver o tempo perdido, não com o carro, mas com o meu filho. Não vou decepcionar mais ninguém, principalmente ele.
– Vejo que parece mesmo determinado. – Raul limpou a boca com o guardanapo. – Terminei de tratar das últimas pendências do enterro e do escritório do papai e estou pronto para partir amanhã cedo. Não se esqueça de manter contato. Qualquer coisa me avise.
– Não se preocupe. Eu e o garoto aqui vamos nos dar muito bem, não é? – disse Enzo, tendo a resposta positiva do filho em um balançar de cabeça.
Terminado o jantar e a sobremesa, Vinícius deu boa noite ao tio e foi levado pelo pai para o quarto, o lugar da casa que estava particularmente ansioso para conhecer. Tudo estava como Enzo havia deixado antes de partir: a mesinha do computador continuava no canto, a coleção de carrinhos estava bem distribuída na estante e os cartazes de seus filmes favoritos enfeitavam as paredes azuis.

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Rabiscos
Mystery / ThrillerEnzo Damasceno precisa retornar à sua cidade natal para cuidar do filho que ele não conhecia após o menino ficar órfão de mãe. O talento extraordinário que a criança demonstra ter irá se somar aos desafios naturais da paternidade.