Vinícius ficou com a cara enfiada em seu caderno de desenho desde a volta da casa da família Castilho, com pequenas pausas para o jantar, banho e em ocasiões em que via que o pai parecia prestes a perguntar ou tentar ver o que tanto ele fazia.
A caminho da escola, ele via os olhos azuis de Enzo o olhando vez ou outra pelo retrovisor, faiscando com uma centelha de curiosidade. O menino baixava o lápis no banco traseiro, olhava ocasionalmente para a janela e voltava ao trabalho tão logo percebia que não estava mais sendo observado. Ele vinha se mostrando bom em guardar a surpresa para o momento certo.
Na sala de aula, continuou disfarçando os esforços empenhados no novo projeto, as mãos escorregando das tarefas matemáticas para as folhas rabiscadas a cada distração de Daniela.
Ele queria deixar o trabalho para um momento em que pudesse dedicar a ele uma atenção maior do que poderia ter nas brechas de tempo em que a professora ia ajudar os outros alunos com as dezenas e unidades, mas estava muito ansioso para terminar.
Dessa forma, desdobrando-se entre o livro escolar e o caderno de desenho, conseguiu traçar uma última linha, um detalhe suficiente para considerar a obra concluída, e sentiu o estalo de quem acabava de encaixar uma engrenagem em um relógio. O mecanismo estava funcionando. De uma maneira estranha, havia atividade oculta naquilo. Claramente sabia que, por mais elogiados que seus desenhos fossem, não tinha o talento de pôr vida a riscos em um papel, mas algo estava nitidamente diferente.
Guto deve ter sido o primeiro a perceber. Sentado na carteira vizinha como costumeiramente estava, lançou olhares furtivos para o colega. Daniela tinha deixado claro que não queria os dois conversando muito durante a aula, muito menos perturbando pelos desenhos, mas as tarefas estavam bem encaminhadas, e, com a iminência do recreio, não viu problema em uma rápida aproximação.
– O que estava fazendo? – Guto se inclinou para falar.
– Quando?
– Agora. – Com um gesto discreto, o menino indicou o que estava sob os livros.
– Ah... Terminando um desenho. Quer ver? – A mão de Vinícius tocou na metade direita do livro e paralisou antes de levantá-la.
– Mocinhos! – Daniela apareceu em frente à carteira. – Terminaram os seus deveres?
– Já, tia. Só ia mostrar um desenho que estou fazendo desde ontem para o Guto.
– Tem certeza? – A professora ofereceu um olhar desconfiado para o outro aluno. – Não fique fazendo o que pedem, ou não deixarão você estudar. Nós já conversamos sobre isso, lembra?
– Não estão pedindo para eu fazer nada. Vou mostrar uma coisa que vi no passeio ontem com meu pai e só.
A conversa começava a despertar a atenção das outras crianças, boa parte delas se inclinando sobre as mesinhas com os deveres matemáticos desprezados. Ver Vinícius desenhando era uma diversão, e Daniela tinha que se esforçar para conter a empolgação de todos.
– Certo. Podem ver. Mas só uma olhada, está bem? Vamos nos concentrar na aula. – Ela se virou e caminhou para a lousa, deixando os alunos se levantarem e espicharem o olhar por sobre os ombros de Vinícius, que tirou o livro de cima do caderno, virou a capa verde e folheou as folhas desenhadas, um curto passeio por formas e cores que terminou na última página usada, onde ele estava como podia ser visto na velha casa, muito bem reconhecível para quem olhasse os braços de músculos definidos erguendo do chão o corpo com asas de penas desgrenhadas. Era preciso um grande talento para fazer tudo caber em uma folha, e um dom ainda maior para reproduzir com fidelidade aquele olhar que tinha levado o autor original à exaustão.

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Rabiscos
Misteri / ThrillerEnzo Damasceno precisa retornar à sua cidade natal para cuidar do filho que ele não conhecia após o menino ficar órfão de mãe. O talento extraordinário que a criança demonstra ter irá se somar aos desafios naturais da paternidade.