Doutora Aurora

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— Sonho do dia? — ele se inclina em direção ao meu ouvido esquerdo, mas não abro os olhos, continuo segurando o peso do que sobrou de minha dignidade, com a ajuda das mãos entrelaçadas. Sentia que minha cabeça ia explodir, e permanecia ali, inerte, esperando a Dipirona fazer efeito.

— Comprar um trailer para passar as férias e os finais de ano, viajando e conhecendo o mundo. — levanto os meus olhos e vejo quando franze o cenho pra mim.

— Quero ter um kit de pesca. Quero pescar sempre que eu conseguir uns dias em casa. Todo homem que se preze, tem um. — coça um pouco a barba espessa, e como combinamos, a gente não ri um do sonho do outro.

Fica me encarando seriamente, e eu o mesmo. É... pescaria... nunca pensei.

— Certo, pescaria... — o policial com seu distintivo bonito enfim sorri, acho que gostando da minha falta de interesse sincera.

— Tudo bem? Domingo de ressaca?

— Em minha última noitada, eu tinha uns dezenove e fui obrigada a ir, pelo meu pai. Ele me achava esquisita, tinha medo de eu acabar uma doutora solteirona mofando em meio aos livros de medicina. E ele acertou. — ri brevemente, mas a entrada de algum cliente no café chama sua atenção. Sei disso porque o sino da porta irrita a minha dor de cabeça. Depois de um tempo volta a me fitar ali, bem de pé, ao meu lado. — Achei que militares eram obrigados a manter a barba mais rente.

— Não nos obrigam. — fala comigo, mas na verdade move seus olhos para a pessoa, que agora, á minhas costas, devia estar se encaminhando até Jéssica, a atendente de avental azul tiffany. Eu amava aquela cor.

— Tudo bem? — me analisa quando chamo sua atenção.

— Pelo jeito, melhor que a doutora. Vá tomar uma Dipirona!

Faço uma careta, ele volta a fechar sua fuça de marrento, e se adianta para pegar seu café, e se juntar a seus amigos de trabalho logo em seguida. Os que chegaram primeiro, e sempre se sentavam á mesa mais no fundo.

Jess nunca escrevia João Pedro errado no copo de papel, ela sempre escrevia "marrento bonitão", mesmo já tendo falado que nunca o vira tirar foto do copo, sorrir, estranhar, fazer careta para aquilo ou nada parecido. O marrento era mesmo debochado e fingia que nada acontecia quando pegava seu pedido. E não só ela, todo o condomínio hospitalar tinha muitas dúvidas com relação a meu amigo bonitão. Se era solteiro, o porque não dava brecha para ninguém, onde morava e com quem... bom, eu não sabia de nada disso e nunca perguntei. Fizemos amizade bem aos poucos, desde que parti de Santa Catarina para São Paulo, a convite de um amigo médico que me indicou à vaga de hematologista no hospital.

Á todas as médicas e enfermeiras que me perguntavam sobre meu "amigo delegado gostoso", eu só tinha uma resposta:

'Não sei, não falamos muito sobre a nossa vida pessoal, conversamos brevemente quando a gente se encontra ali no café, esporadicamente, e nossos assuntos são sempre aleatórios, e confusos. E só nos esbarramos porque a DP do condomínio é do outro lado da rua, fora daqui, não temos contato, e não, eu não tenho o telefone dele..."

Não sabia muito sobre Pedro, era só um amigo "de trabalho" mesmo, só sabia de alguns gostos pessoais, como a pescaria de hoje, a mania caricata de ter como hobby, Tiro Esportivo, um São Bernardo, o cão farejador que ele adotou, chamado Dillan... tudo bastante clichê de livro pop, então...

Suspiro mesmo sentindo a dor diminuir um terço.

É quando volto a apoiar a testa nas mãos entrelaçadas, respirando fundo, que o celular vibra com um SMS de Anna. A praga manda SMS porque está bloqueada no WhatsApp.

I N C Ó G N I T A - ContoOnde histórias criam vida. Descubra agora