**Capítulo 3: Canções de Outrora**
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O tempo é uma coisa estranha para um dragão. Para Alice, os dias e as noites se misturavam em um ciclo contínuo de caça e sobrevivência, e o conceito de tempo humano começou a se desvanecer. Um ano se passou desde que ela renasceu como um Canção da Morte, e durante esse período, Alice se tornou uma caçadora habilidosa e implacável.
A rotina diária de Alice era simples, mas sombria. Ela patrulhava os céus em busca de dragões desavisados, utilizava seu canto hipnótico para atrair suas presas e, em seguida, lançava projéteis de âmbar, que se solidificavam ao contato, prendendo suas vítimas em casulos de resina dourada. O ritual de captura e consumo tornou-se quase automático, uma segunda natureza para ela.
No começo, a fome havia sido a força dominante, mas com o tempo, a sensação de vazio começou a se instalar. A satisfação momentânea após uma refeição era logo substituída por um silêncio desconfortável, uma lembrança persistente da solidão em que Alice vivia.
Era durante esses momentos de quietude, entre uma caça e outra, que Alice começou a revisitar as memórias de sua vida passada. Ela se via tentando preencher o vazio com algo que não fosse apenas sobreviver. Enquanto voava sobre as vastas paisagens ou descansava em sua caverna, Alice começou a recordar as canções da sua vida anterior. As melodias vinham até ela, fragmentos de uma vida há muito perdida.
Uma canção, em particular, ressoava mais fortemente em sua mente. Era uma antiga música de pirata que ela conhecera na infância: "Tenho a Flecha do Cupido". A melodia alegre e as letras simples, mas cativantes, ecoavam em sua mente enquanto ela se afastava do peso da existência que agora carregava.
"Tenho a flecha do Cupido, a riqueza é ilusão
E só pode consolar-me, meu marujo alegre e bom.
Venham, todas belas damas aqui deste lugar,
Que amam um bravo marujo cruzando o alto mar.
Tenho a flecha do Cupido, a riqueza é ilusão
E só pode consolar-me, meu marujo alegre e bom."As palavras se tornaram um refrão constante em seus pensamentos, e Alice se pegava cantarolando a melodia, mesmo enquanto caçava. O som era uma mistura peculiar de sua nova voz de dragão com a antiga voz humana que ela ainda podia imaginar.
Certa manhã, enquanto repousava em uma montanha, Alice decidiu cantar a música em voz alta. Era um ato de rebelião contra a monotonia de sua nova vida, uma tentativa de lembrar quem ela havia sido antes de se tornar o monstro que agora era. Ela inspirou profundamente, expandindo as vértebras que permitiam seu canto poderoso, e começou a cantar.
A princípio, a canção saiu em uma mistura caótica de tons, um som que reverberava pelas paredes da montanha. Mas à medida que ela ajustava sua voz, o som começou a se alinhar com a melodia que Alice lembrava. As notas agudas e os acordes alegres enchiam o ar, criando uma atmosfera quase surreal.
Para sua surpresa, a canção não apenas trouxe conforto a ela, mas também atraiu outras criaturas da floresta abaixo. Pequenos pássaros e animais se aproximavam, fascinados pelo som. Alice percebeu que, apesar de sua voz de dragão, ela ainda possuía a capacidade de encantar com sua música.
Esse novo passatempo tornou-se uma obsessão. Entre as caçadas, Alice começava a compor novas canções, misturando melodias da sua vida passada com a realidade de sua existência atual. Ela cantava sobre a solidão dos céus, sobre a fome que nunca se apagava e sobre a saudade de um mundo que ela nunca mais poderia alcançar.
"Tenho a flecha do Cupido, a riqueza é ilusão
E só pode consolar-me, meu marujo alegre e bom.
Venham, todas belas damas aqui deste lugar,
Que amam um bravo marujo cruzando o alto mar."As palavras saíam naturalmente, como se estivessem esperando para ser cantadas. À medida que Alice se perdia em sua música, ela encontrava uma estranha paz, um breve alívio da sua nova realidade. As canções se tornaram seu refúgio, um pedaço do mundo que ela havia deixado para trás.
Entretanto, mesmo enquanto Alice se entregava à criação musical, o instinto de caçadora nunca a abandonava. A fome sempre voltava, implacável e urgente. Quando isso acontecia, Alice sabia que precisava caçar novamente. Ela subia aos céus, buscando suas presas, mas agora, seu canto era diferente. Não era apenas uma ferramenta de caça, mas uma expressão de quem ela era - ou quem ela ainda queria ser.
Certa noite, após uma caçada particularmente difícil, Alice retornou à sua caverna com um sentimento de insatisfação. A presa havia sido difícil de capturar, e o combate havia despertado algo primitivo dentro dela, algo que ela não conseguia explicar. Mesmo depois de saciar sua fome, a inquietação permaneceu.
Ela se acomodou em um canto da caverna e começou a cantar novamente, tentando afastar os pensamentos sombrios. A melodia de "Tenho a Flecha do Cupido" encheu o espaço vazio, e por um momento, ela sentiu-se conectada com algo além de si mesma.
Mas no fundo, Alice sabia que algo estava mudando. A solidão e o silêncio estavam começando a cobrar seu preço, e ela se perguntava por quanto tempo poderia continuar assim, vagando sozinha por um mundo que não era mais o seu. As canções que ela criava eram uma lembrança constante de sua humanidade perdida, mas também um eco de um futuro incerto.
Enquanto as últimas notas da canção ecoavam na caverna, Alice percebeu que, apesar de tudo, ela não estava disposta a desistir. Ela continuaria cantando, compondo, e talvez, um dia, encontrasse uma nova razão para existir nesse mundo de dragões e mistérios.
Mas por enquanto, sua voz era sua única companhia, e suas canções, as únicas coisas que a mantinham conectada a quem ela realmente era - uma alma perdida em busca de um novo caminho.