— Sae, se não for ajudar, não estre no caminho. — Orientou Asumi.
A garota assistia. Não era muito fã de colocar a mão na massa, pois sentia-se suja quando o ovo pregava a farinha em suas digitais, mas nunca foi de paralisar ante a bagunça. Era, estranho, no mínimo. Assistia aquela cena cotidiana de uma cozinha zoneada como algo nunca d'antes presenciado.
— Senta, Sae. — Aquele estranho conhecido dizia, mandando, apesar de parecer uma simples sugestão. Afastava uma cadeira e a guiava antes que fosse tarde de mais, pois logo aquela seria expulsa do local pela chefe da cozinha.
Pouco sabia o que fazer, apenas seguia seus comandos, sobrecarregada com tudo o que acontecia. Como ele, entre todos os outros, teve a ousadia de fingir que isso é normal? Seu respirar, quase flamejante, aquecia o cômodo um pouco mais, impossível deixar de nota-lo.
Sae não tinha raiva, mas algo parecido. Continuava a encarar, com o rosto pensativo entre seus punhos apoiados à mesa. Kai havia mudado um bocado.
Estava mais alto, mais encorpado, mais forte. Suas chamas nunca foram tão puras, seu brilho tão extravagante, e o sorriso estava bonito de verdadeiro. Ele estava visivelmente melhor do que todos os anos que dividiram juntos.
— Por quê? — A menina questionou, olhando nos olhos daquele que quase nenhuma atenção dava a ela. Observava-o enrolar bolinhos de arroz entre as luvas termicas de borracha, tentando não queimar o banquete. — O que fez pra chegar até aqui? — Sae era mais específica, esticando o braço para chamar sua atenção na bancada que dividiam, ela e o velho amigo. — Por que quis vir?
O silêncio do menino grita.
— Isso é algo educado de se dizer para uma visita, Sae? — Asumi briga, ainda calma, caminhando para colocar mais verduras no caldo de udon. — Onde estão os modos que eu sei que você tem? Vamos lembrar deles.
Mas as crianças não pareciam, ali, se importar com a presença da mais velha.
As preocupações que guardou por uma semana inteira já corroeram todo o seu sistema, agora a garota era uma máquina de dúvidas, que não resolvia quaisquer de suas obrigações por causa desse seu gigantesco problema, enquanto o menino, de tão bobo e incoerente, continuava a sorrir, sem explicação alguma para a sua chegada tão abrupta, tão menos para uma visita fora de hora.
— Estive preocupado com sua mudança de curso, achei melhor vir dar uma olhada o mais rápido possível. — Ele ria, distraído como um tolo.
— Não é motivo pra enfrentar uma advertência da Prince.
— Sae! — Sua mãe postiça volta a reclamar. — Não te ensinei a ser assim.
— Qualquer coisa é motivo, quando se trata de você... — Kai sussurra, evitando o olhar de sua melhor amiga a todo custo.
Era estranho e meio assustador o jeito como sua felicidade de repente se tornou sombria. Encaravam-se novamente, ambos congelados no tempo. Uma enfurecia-se a quanto o outro trancava suas desculpas na mais forçada tentativa de se fazer justificado, beirando o limite do acreditável.
Aquele não era espaço para uma discussão, e esse não era o momento, mas, por algum motivo, não conseguiam se manter quietos enquanto na presença um do outro.
— Sae, vá pro seu quarto. — Mandou a matriarca, contra todos os princípios de criação os quais defendia. — Não chateie seu amigo por essas bobagens, que coisa feia.
— Ta tudo bem, tia. — O menino respondeu, mas a criança não quis se estressar, apenas se levantou, séria, e obedeceu.
Saindo em passos firmes e fortes, que, por uma vez em muito tempo, Sae não acompanhava o caminho característico riscado no assoalho, parecia desorientada.
Ao longe, era possível ouvir quando batia sua porta, forte como se quisesse quebrá-la, e pesava um pouco mais na cabeça do menino a ideia de ter vindo. Logo para a casa de Kazato, que sempre foi alguém tão regrada em sua rotina, ele invadira sua preparação para recebe-lo. Sentia-se culpado.
— O que aconteceu? — Correu o irmão mais novo para a cozinha, como se algo de outro mundo tivesse acabado de cruzar seu caminho.
— Só um pequeno argumento, meu amor. — Asumi o tranquiliza.
— Mas.. — Tentou iniciar, tão rápido quanto sua chegada, mas foi interrompido.
— Não se preocupe. Daqui a pouco ela se acalma, querido.
— Não é isso! — O mais novo diz. — Ela não tava com uma cara boa... tipo uma careta.
— Como assim? — Questiona aquele em chamas.
— Tipo: — O pequeno incicia, tentando imitar em grandes detalhes o que a outra fizera, falhando miseravelmente, em um rosto quase grotesco.
— Mãe! — Chegou o sou filho mais velho, quase na mesma carreira que o mais novo, mas um tanto mais timida e devagar. — Eu acho que a Sae ta chorando.
As panelas estralam em surpresa, assim como as labaredas do cabelo da visita. Um bolinho de arroz fora tostado, entre luvas térmicas agora derretidas.
— Mãe! — O terceiro irmão chega, ainda meio sonolento, mas curioso para saber o que ocorria. Antes mesmo que pudesse dizer algo, ele era interrompido.
Brasas ficavam para trás, com o calor flamejante de sua preocupação cortando o ar daquele ambiente. Kai não sabia o caminho exato até o quarto de sua amiga, contudo, auxiliado por forças externas a qualquer saber que possuia, fez um caminho direto até ela, separados, agora, somente por 5 centimetros de madeira.
Ele bate na porta, esperando por respostas. Nada. Um vento frio soprava seus pés descalços, escapando de um turbilhão pela fresta entre a porta e o chão. Chamava pelo nome dela algumas vezes, como se aquela fosse uma questão de vida ou morte e, preocupado, tentava nunca ceder a desistência.
— Sae, qual é?! Deixa eu te explicar! — Pedia por misericórdia, certo de que foi o principal motivo para qualquer sentimento ruim que a garota tinha no peito. — Desculpa, por favor! — Continuou a falar sozinho.
Sae sempre demorou certo tempo para se acalmar de um desajuste, mas não existiam previsões sobre o desfecho da recente crise.
Aqueles olhos, daquela criança, por que tão curiosos e exigentes? Sempre teimou em saber de tudo sobre todos, e agora sofria com o descontrole total de sua vida.
— Desculpa. — Pediu à menina do outro lado do muro para a sua tranquilidade. — Desculpa, Sae, desculpa! Não fique com raiva de mim.
Fuligem tornava a impregnar a tinta da porta do quarto, enquanto o menino tentava escutar o que acontecia la dentro. A pequena plateia, formada pelos outros integrantes da família, observa enquanto, tão vulnerável, Kai deixava seus medos subirem a cabeça.
— Sae, por favor. — Choramingou, chacoalhando a macaneta da porta mais uma vez. — Deixa eu me explicar...
Não havia resposta.
Por algum tempo, o mundo parecia parar só pra escutar com clareza o que sucedia a maior desventura na relação dos dois, que qualquer razão ainda tinha.
Um estalar ressoava no espaço aflito preenchido pela fumaça do seu ser. A sombra do trinco da porta, agora, não estava como antes. Então, ressabiado, o garoto torna a virar a macaneta de forma cautelosa, até que nada mais o impedia de estar presente.
Não tinha qualquer plano, meta ou estratégia. Fechava a porta atrás de si, certo de que esse seria o melhor caminho, assistindo o rosto molhado e vermelho que nunca viu naquela garota. Ela sempre foi forte, muito mais do que qualquer um que ja chegou a conhecer um dia, mas, agora, chorava como uma criança perdida.
Sae sentava-se no canto do quarto, escorada na parede, com olhar vago e suspenso. Assim, Kai sentou-se na beira da cama, bem a sua frente, completamente vidrado nela.
Como uma cidade depois de ser atingida por uma grande catastrofe, aquele cômodo estava zoneado e bagunçado. Nem mesmo moveis pesados aparentavam ter escapado das fortes rajadas de vento, todos tortuosamente movidos de sua origem.
>>>> Fim do Capítulo <<<<
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Hero's Legacy - Boku No Hero
FanfictionApós destaque no grade Festival de Esportes da Yuei, uma aluna da turma geral é convidada a seguir o caminho dos aspirantes a heróis, mas algo parece impedi-la de gostar dessa ideia. Entre o passado que a assombra e terríveis ameaças, talvez, enfim...