𝒸𝒶𝓅𝒾𝓉𝓊𝓁𝑜 11

101 10 4
                                    

-Ai, o seu apartamento é um charme - disse Annelise, tirando o salto alto pra entrar, deixando eles na porta e depois analisando a sala e a cozinha, ela segurava uma embalagem com dois litros de vinho.

-Obrigada - respondi, com as mãos pra trás, os dedos indicadores enroscados um no outro - Fica à vontade, vou pegar um abridor pra gente degustar esses vinhos.

Coloquei um disco clássico pra tocar, nós duas sentamos no sofá com nossas taças cheias até a borda, e após alguns sorriso simpáticos e conversa boba jogada fora, Annelise mudou de expressão e desviou o olhar para baixo, triste:
-Queria estar em um humor melhor, não quero parecer uma chata assim logo de cara.

-Eu sei que você não é chata - respondi, pegando na mão dela - Olha como você me tratou no dia em que nos conhecemos, ninguém é simpático assim em Nova York se não for uma alma iluminada.

-Obrigada - ela sorriu com os olhos, que estavam marejados - Me sinto tão sozinha desde que mudei pra cá, é uma cidade cinzenta e fria, deixei tudo que eu amava pra trás.

Soube que era o momento de começar a investigar a vida do casal, finalmente meu plano estava entrando em ação:
-Mas porque se mudou?!

Annelise suspirou, comprimindo os lábios e ajeitando o cabelo preto atrás da orelha:
-Pra viver o sonho do meu esposo, ele teve uma oferta irrecusável de emprego pra cá e precisou se mudar, e eu como uma boa esposa aceitei vir junto - dava pra ver na voz dela a insatisfação com tudo - Mas pra ele foi fácil, ele já tem amigos aqui desde a época da faculdade, sempre viajou pra cá a negócios e tal... Nunca esteve sozinho como eu estou.

-Bom - falei, de um jeito caloroso - Dizem que amizade é sobre intensidade e não sobre o tempo, e se isso for real, você não está mais sozinha, estou aqui, de coração por você - eu não sabia se aquilo era mentira ou verdade, a relação era meio nebulosa, pois eu simpatizava com ela apesar de querer roubar seu marido.

Inesperadamente ela me abraçou, seu cheiro adocicado e fresco de perfume invadiu minhas narinas e me trouxe lembranças da juventude, ela cheirava como as garotas ricas que eu sempre tentei me encaixar, mas que no fundo sempre me viam como uma intrusa, eu era aceita apenas por ser bonita e embelezar o grupo, mas sabia que nunca de fato faria parte, mas essas garotas cresciam e se tornavam Annelises, e agora, éramos páreo a páreo fora das grades do ensino médio.

-Significa muito ouvir essas palavras - ela soltou do abraço mas continuou segurando minhas mãos e me olhando fixamente - Acho que o vinho está começando a me deixar chapada, tudo está mais leve e meus dedos estão formigando.

-Então se deixa levar - fiquei de pé e a trouxe comigo, de mãos dadas começamos a girar pela sala, lentamente com os pés descalços no tapete felpudo, estávamos sorrindo e o rosto dela era a única coisa em foco na minha visão, todo o resto estava girando e embaçado - Apesar dos problemas, nesse momento, você está segura e vivendo o momento, apenas viva.

Giramos até ficarmos tontas e caímos sentadas no chão, rindo feito crianças e enchendo mais uma vez as taças até transbordar, encostamos na parte de trás do sofá e ficamos bem próximas uma da outra, quase cochichando:
-Droga, vou te confessar uma coisa - ela riu e fez sinal de silêncio - Mas é segredo sagrado.

-Levo seu segredo para o túmulo - jurei de dedinho, mas era mentira.

O sorriso de Annelise se desfez aos poucos, conforme ela ia pensando nas palavras que estava prestes a dizer:
-Eu sou uma hipócrita - tossiu coçando a garganta e dando um gole demorado - Sempre me considerei feminista, uma mulher progressista e com idéias revolucionárias, me envolvi em diversas causas na adolescência e arranjei briga com toda a minha família por serem tão conservadores... Mas no fim, eu me casei com um misógino e tento fechar meus olhos para isso todos os dias, só que no meu interior sinto que estou ferindo meus princípios... Sou uma péssima feminista.

BINGO, eu finalmente tinha fisgado algo útil, ela estava começando a falar mais sobre John, e de forma negativa, eu precisava ir o mais fundo possível, então perguntei:
-Misógino? Mas o que ele faz? Te bate?!

Ela negou com a cabeça, mas sem muita veemência:
-Eu já não sei mais dizer, ele nunca me bateu de fato, mas sempre tem atitudes agressivas quando discordo dele, já me segurou contra a parede, apertou meus pulsos... Ele não me respeita como igual sabe? E tudo isso piora no sexo... Ah, o sexo é um pesadelo.

O vinho estava sendo o melhor facilitador para que as frustrações fossem vomitadas, e eu comecei a fingir que estava bebendo pra não perder nenhum detalhe, continuei instigando:
-Sinto muito... Até o sexo é ruim?

Annelise respirou fundo e enrolou o cabelo curto em um coque frouxo, abraçou os próprios joelhos contra o corpo:
-Ele tem fetiches estranhos, gosta de dominar e ser violento, e eu não gosto disso, nunca gostei, desde a primeira vez que transamos eu soube que seria um problema, mas já estava apaixonada e achei que encontraríamos um meio termo, mas ele se recusa a ceder, diz que é a natureza dele, mas eu não admito ser humilhada pra satisfazer a fantasia de alguém, tudo isso é culpa da pornografia, ele acha que vive em um filme desses...

Nesse momento fiz um movimento ousado, encostei sua cabeça em meu peito e acariciei seu cabelo:
-É uma pena que esteja passando por isso, eu jamais imaginaria, você é uma mulher tão elegante e empoderada... E por que não pede o divórcio, o que te impede?

Senti uma lágrima quente pingar em meu braço, ela estava chorando baixinho:
-Eu o amo, infelizmente eu o amo, mas a cada dia se torna mais difícil... Desconfio que ele me trai pra satisfazer esses desejos sádicos.

O vinho desceu quente garganta abaixo, flashs de memória se misturaram com os flashs da polaroide da noite passada, uma pontada de culpa fisgou minha consciência, eu apenas desviei o olhar e depois a consolei com um afago no braço...

Ofereci um cigarro e fomos fumar na varanda, as duas apoiadas no parapeito jogando a fumaça para o céu escuro forrado de nuvens carregadas...

-Olha, que interessante - apontou ela com o cigarro - Moramos exatamente no mesmo andar, a varanda da frente é a do meu apartamento.

-Outra coincidência - respondi, sorrindo - Parece que estamos destinadas, os destinos cruzados.

-Pois é - Annelise me encarou, por um tempo desconfortavelmente longo, eu não sabia se ela estava me analisando ou querendo me beijar, ambas as possibilidades pareceram muito reais e palpáveis naquele momento - Estranho...

𝐌𝐢𝐬𝐬 𝐕𝐢𝐜𝐢𝐨𝐮𝐬Onde histórias criam vida. Descubra agora