𝒸𝒶𝓅𝒾𝓉𝓊𝓁𝑜 20

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O caminho foi tortuoso, com as pernas manchadas de sangue seco, o corpo imundo de lama e vegetação grudadas na pele, esperma ressecado repuxando meu rosto no vento frio do crepúsculo, acendi um cigarro e cambaleei todo o caminho deixando quem passava por mim de olhos arregalados... Segui por dentro do parque, até as ruas assombradas pela neblina e segui para o meu prédio, não sem antes parar e contemplar o prédio ao lado, senti um calafrio na espinha.

....

Era como se eu estivesse processando o trauma que havia acabado de passar, apesar do corpo dolorido minha mente estava anestesiada.

Preparei um banho quente, entrei na banheira suspirando e gemendo de dor nos primeiros instantes, depois relaxei com os olhos fechados e com a fumaça que subia, a água ficou manchada com sangue e sujeira, fiz uma concha com as mãos e lavei o rosto, depois o cabelo, e então mergulhei escorregando para o fundo.

Fiquei mais tempo do que deveria, mas era tão aconchegante e acolhedor o silêncio embaixo d'água, sentir meu corpo insistir em flutuar, o fluxo de oxigênio se tornar tão baixo que era difícil pensar em algo, mas então os pulmões queimaram e eu me debatei pra subir, agarrando a borda e arfando com o rosto pra fora da banheira, e então dei risada sozinha, vendo a água pingar no chão de ladrilho... Eu estava viva, se estava doendo era real, eu ainda respirava.

Dei um gritinho assustado quando a campainha tocou na sala, cobri a boca e depois de hesitar, sai da banheira ainda molhada e fui pingando pelo corredor, com o cabelo grudado ao corpo e os mamilos duros de frio, encostei na maçaneta e lentamente girei, abri uma fresta.

John terminou de abrir a porta com um empurrão e me puxou para seus braços, me deu um beijo lascivo com uma mão na minha nuca e a outra na cintura, ele parecia desesperado.

-Obrigado meu Deus - sussurrou ele, com a voz embargada no meu ombro - Você está viva - ele segurou meu rosto com as mãos e admirou cada centímetro - E está bem!! Ah as últimas horas foram as mais agonizantes da minha vida Lana,

Eu me senti uma boneca nos braços dele, indefesa e sem cérebro:
-John, você tentou me matar - as palavras doíam ainda mais quando ditas - Colocou um revólver na minha boca, disse pra eu sumir da sua vida e da sua família... Então, o que você tá fazendo aqui?! Não quero morrer porque você está confuso.

Ele negou com a cabeça, com o maxilar cerrado pelo nervosismo, daquele jeito charmoso de sempre, e então eu vi o mesmo John que tinha visto aquela tarde na varanda, o mesmo homem que tinha me conquistado, mas ainda haviam traços daquele que me machucou no parque, eram duas faces no mesmo rosto:
-Eu te amo, Lana - ele pareceu aliviado ao dizer isso, como se estivesse engasgado - E fiquei louco com o fato de talvez te perder pro fracassado do meu filho, ou que você entrasse na minha vida da forma errada, eu odeio sua amizade com Annelise, odeio perder o controle, preciso cuidar e proteger os meus, mas você me desafia, me deixa maluco, eu perdi a cabeça.

-Espera - coloquei a mão fria no tecido da camisa encima do peito dele - Você disse que me ama?!

John olhou dentro da minha alma, atravessando minhas pupilas, e me deu outro beijo, me pegou no colo e foi me levando como quem leva uma criança sonolenta para a cama, fechou a porta do quarto com o pé atrás de si e me deitou na cama, depois foi se despindo lentamente e se deitou ao meu lado.

-Não consigo transar agora - lamentei, me encolhendo - Por favor...

-Não quero isso - ele puxou meu corpo para si e deitou meu rosto em seu peito peludo - Quero só ficar aqui com você... Aquele que te feriu, não era eu, era uma parte de mim que as vezes toma conta, e sempre que ele passa do limite sou eu quem consolo e afago, se chama aftercare.

Olhei para ele, mas só via sua silhueta com a luz que entrava pela janela:
-Estou com medo de você.

-Não precisa ficar - John assoprou de leve no meu nariz e sorriu de canto - Não vai mais acontecer... É que você me levou ao meu limite, e eu vi que mesmo em um estado extremo, tenho medo de te perder, seria injusto se você me culpasse sozinho por tudo que aconteceu...

-Então me abraça forte - chorei, encostando os lábios na pele do ombro dele - Me segura até essa sensação que estou caindo passar.

Ali na cama, nós ficamos em silêncio, apenas o som da respiração, os corpos nus se tocando e se conectando novamente, era a primeira vez que ele demonstrava carinho comigo, que dizia palavras bonitas e até as três tão especiais, talvez eu precisasse chegar ao inferno para ser puxada para o paraíso, que era nos braços daquele homem violento mas cuidadoso.

E então, a campainha tocou mais uma vez, John se levantou depressa e começou a colocar as roupas:
-Está esperando alguém?

-Não - respondi, me enrolando no lençol - Mas vou lá ver quem é.

...

Annelise estava do outro lado da porta, com um vinho chileno e um quadro em mãos, ela abriu um grande sorriso ao me ver:
-Nossa - me olhou de cima a baixo - Parece uma escultura, com esse lençol desenhando seu corpo.

-Obrigada - respondi, mordendo o lábio inferior, tímida - O que faz aqui?

-Bom - Annelise mostrou o quadro - Fiquei pensando em uma forma de te presentear, e acabei pintando essa tela em uma madrugada só, ainda está secando, mas estava ansiosa pra te entregar, foi inspirada em você.

-Uau - peguei na mão, e admirei, era uma paisagem do oceano ao mesmo tempo que violento, melancólico - É incrível.

Annelise entrou, sem minha permissão, apenas entrou e começou a procurar um abridor de vinho na gaveta:
-Quer assistir um filme? - ela estava empolgada, alegre - John está sumido o dia inteiro, deve estar com alguma puta por aí, estou livre pra ser toda sua.

Engoli em seco, sentindo o sangue congelar nas veias, pois John estava no quarto, provavelmente ouvindo tudo:
-Não é uma boa hora - falei - Sinto muito, mas estou meio cansada e quero ficar sozinha.

Annelise paralisou, me olhou e semicerrou os olhos:
-O que são esses hematomas?!

-Nada - respondi de imediato, seca - Só tive problemas com uma conhecida, nada grave, mas é sério Anne, quero tomar um remédio e dormir.

Ela baixou o olhar, respirou fundo e ajeitou o cabelo curto e preto, que contrastava com a pele pálida:
-Está me evitando né? - ela suspirou - Depois da noite que tivemos juntas, sinto que algo ficou estranho, é porque sou casada?!

Cravei as unhas na palma das mãos, cerrando os dentes de nervoso:
-Não - senti que precisava devolver um pouco de agressividade pro mundo - É porque eu não sou lésbica, foi apenas um momento, não quer dizer que eu vá ser sua namorada ou algo do tipo, somos amigas Anne, entenda isso.

Foi como se eu a alvejasse com vários tiros, pois ela se apoiou no balcão, ficou em silêncio, depois olhou ao redor tentando assimilar tudo... Me olhou nos olhos, assentiu, deu as costas e saiu do apartamento, sem dizer nada... Deixando um silêncio gritante na sala.

...

John abriu a porta do quarto, saiu de lá mudo, com um olhar perdido, ficamos nos encarando sob a meia luz da lua, ele balançou negativamente a cabeça:
-Agora tudo faz sentido...

-O que? - fiquei com medo da resposta, mas tive que perguntar.

-Annelise - ele coçou o nariz - Nunca a entendi, sempre soube que ela escondia segredos, e sempre soube que ela nunca teria prazer comigo... Eu podia estar com raiva agora, de você Lana, mas não estou, porque eu entendo ela... Você é como uma sereia, hipnotiza e seduz, puxa pra dentro do mar, pra dentro desse maldito oceano - ele apontou pro quadro encostado na parede - E então, somos afogados nos seus dramas e fantasias, que pra minha sorte ou azar, se encaixam tão bem nos meus...

𝐌𝐢𝐬𝐬 𝐕𝐢𝐜𝐢𝐨𝐮𝐬Onde histórias criam vida. Descubra agora