Lágrimas Vermelhas

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— Alô... O que você quer, Caio? — era Fernando do outro lado da linha. Eu havia acabado de ligar para ele.

— Oi... Então... Meu dia foi horrível hoje, será que eu posso dormir aí? A gente vira a noite fazendo merda, sei lá. To com uma garrafa de vinho quase cheia na mochila.

— Porra, hoje? Não tava afim não... — Fernando não tinha pique pra esse tipo de coisa sempre. A cada vez, eu só saberia se ele concordaria ou não após ligar. Era imprevisível.

— Então deixa pra lá... — eu disse, desistindo

— Não, espera! Vem logo, vai. — ele cedeu.

— Certeza?

— Vem logo. — meu amigo confirmou

Desliguei o telefone após quase ser atropelado e voltei a prestar atenção no trânsito. Virei o guidão da bicicleta, mudando minha trajetória para a casa do meu colega.

Não era longe. Fazia pouco tempo que eu havia saído da escola, e a casa dele era perto de lá. Normalmente eu dormia lá sempre que estava mal, assim, não precisava lidar com meus pais. Estes estavam sempre brigando, e ficar em meio aos dois só me deixava pior. Os pais de Fernando, em contrapartida, sempre foram muito acolhedores e me atenderam sempre que precisei.

Cheguei na casa de Fernando e toquei a campainha. Segundos depois, ele apareceu para abrir o portão. Ele estava sem camiseta e seus cabelos estavam molhados, pingando, o que indicava que ele acabara de sair do banho. Entrei na casa dele já me sentindo como em minha própria. Tomei um banho também, e peguei uma roupa emprestada dele, pois não queria dormir de uniforme, e as únicas roupas extras que eu tinha na mochila eram aquelas usadas para me disfarçar nos momentos das cartas.

Comemos miojo na janta e bebemos o resto da Coca-Cola. Sempre que eu dormia na casa dele, tudo era da forma mais casual possível. Algumas vezes, subíamos no telhado e deitávamos, conversando e observando as estrelas. Em outras, ficávamos jogando videogame a noite toda. Ainda em outras, saíamos durante a madrugada para caminhadas noturnas. No geral, sempre nos divertíamos. Naquela noite, no entanto, eu realmente precisaria dormir.

Enchemos a cara com o vinho que sobrou, além de um resto de vodca que Fernando tinha em sua geladeira e, depois de completamente bêbados, incapazes de tomar qualquer ação racional, acabamos indo nos deitar.

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Em momentos de dor psicológica, é comum que recorramos à dor física. Esta facilmente esvazia a mente e, apesar de obviamente não ser nada saudável, era vicioso. Muito mais do que a bebida ou qualquer outra droga. Olhei para o relógio. Eram três da manhã. Fernando dormia ao meu lado já faziam horas e definitivamente não acordaria com qualquer coisa que eu fizesse. Eu não conseguira dormir nem um pouco até o momento.

Meu canivete ainda estava na minha mochila, bem perto de mim. Não faria nenhum barulho se o pegasse, não daria trabalho e não incomodaria ninguém. Se valeria a pena? Não sei dizer. Provavelmente sim.

Tentei dormir novamente. Virei para um lado e para o outro, mas a única coisa que se passava na minha cabeça era o tique-taque do relógio. Além, claro, de Malu e de tudo que acontecera. E da dor. Do meu canivete. Logo ali.

Olhei para os meus próprios pulsos. Estes tinham severas cicatrizes, mas todas bem velhas. Fazia mais de um ano que eu não cedia para esse tipo de impulso, e não seria naquele dia que eu teria uma recaída.

Fazia muito tempo que eu não via meu próprio sangue escorrer. Por vezes, era necessário escoar a dor para fora do corpo, e a única forma de fazer isso era abrindo um rasgo. Mas me controlei.

"Durma, Caio" eu pensava, mas de nada adiantava. Meus tornozelos também tinham cicatrizes. Estas eram ainda mais velhas, fazia pelo menos três anos que nada ocorria ali. Me segurei.

Eu me remexia na cama, alternando entre as posições, mas não conseguia dormir de forma alguma. Passar outra noite em claro não era uma opção. Assim como ocorrera naquele dia mais cedo, uma lágrima escorreu do meu olho. Enxuguei-a. Olhei novamente para o relógio, já passavam de quatro da manhã.

Por que tinha que ser assim? Por que eu não podia viver como alguém normal? Por que não podia ter Malu pra mim? Por que ela agia daquela forma? Perguntas como essas ecoavam em minha mente, perturbando e oprimindo qualquer felicidade que eu pudesse ter.

Com uma ação rápida, meu canivete não estava mais guardado na mochila. Nenhuma lágrima escorria mais do meu rosto, mas várias escorriam do meu pulso. Eram vermelhas, vivas como sangue. Muito menos dolorosas do que as que saíam dos olhos.

A raiva e a dor antes presas dentro de mim escorriam agora por toda a extensão do meu braço. E do chão. Quanto mais longe de mim, melhor. O efeito da bebida piorava muito toda a situação, e eu não tinha a menor noção do quanto estava me ferindo, ou do que isso me causaria. Diferente das comuns, essas lágrimas viscosas e quentes, mas logo pararam de sair. Maldita cicatrização.

Com uma jogada de mão, abri outro rasgo. Mais fluido vazava do meu braço. Diversas gotas já manchavam o chão do quarto de Fernando, parecia que alguém tinha se machucado feio ali, mas a verdade é que o único lugar que alguém tinha de fato se ferido era o salão, hoje mais cedo. Lá, sim, duas pessoas saíram fisicamente intactas, mas mentalmente destruídas. No quarto de Fernando? Ali havia apenas alguém buscando a cura.

Depois de vários minutos, o chão do quarto já estava todo vermelho, e meu braço, recheado de aberturas. Satisfação. Era isso o que eu sentia. Era o que precisava.

Demorou, mas eu estava finalmente satisfeito. Levantei-me cambaleando, ainda bêbado e completamente fora de mim, e fui até o banheiro pegar papel. Lavei todo o meu braço como pude. Enrolei bastante papel para estancar qualquer cicatriz que decidisse abrir durante a noite, não podia, em hipótese alguma, sujar o lençol com minhas lágrimas vermelhas. Peguei ainda mais papel para limpar o chão, não queria que Fernando soubesse do que acontecera.

Não me lembro muito bem dos detalhes, mas creio que deixei tudo limpo, incluindo meu canivete, e me livrei das evidências. Vesti a minha blusa para esconder as marcas. Não seria suspeito, pois o clima estava de fato bem frio.

Finalmente, consegui dormir, e muito bem. Meu corpo estava completamente limpo por dentro, minha mente, mais sã do que nunca. O efeito da bebida era o menor dos problemas, e dos maiores eu já me sentia livre. Não sentia nada além de satisfação e não me arrependi. Dormi por horas.

Ass: AnônimoOnde histórias criam vida. Descubra agora