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Era uma manhã fria, o tipo de frio que fazia qualquer um querer se enfiar de volta nos cobertores. Mas o som da trombeta ecoando pela floresta acabou com qualquer esperança de mais cinco minutos de sono. Aquele som sempre me parecia exagerado. Depois de forçar os olhos a abrir e encarar o teto por um momento, arrastei-me até o banheiro para tentar tomar um banho.

Eu estava no dormitório do segundo ano, e os rostos habituais de meninas que estudavam comigo estavam por toda parte.

A blusa branca com mangas verdes era obrigatória, e eu a vestia sem pressa, sentindo o tecido gelado contra a pele.

Desci para o refeitório, rezando para não cruzar com meu irmão pelo caminho. Não que tivéssemos algo pendente, mas a distância que se formou entre nós nos últimos meses era palpável.

O refeitório ainda estava movimentado. Peguei uma bandeja e procurei um canto para me acomodar, esperando não me deparar com ele. A comida parecia melhor do que serviam na escola — pães frescos, café quente, frutas — mas a minha mente estava ocupada demais para aproveitar.

Eu tinha uma lista de atividades para escolher naquele dia: esgrima, vôlei, teatro, corrida, nadar... Todas pareciam atraentes, mas ao mesmo tempo me sentia bloqueada, incapaz de decidir o que realmente queria fazer.

Era uma indecisão estranha, quase paralisante.

Enquanto me sentava com minha bandeja, o burburinho ao meu redor não demorou a me alcançar. Senti os olhares de algumas alunas do terceiro ano, cochichando entre elas.

Eu não sabia o que diziam, mas seus olhares breves na minha direção denunciavam que, de alguma forma, eu era o assunto. Respirei fundo, tentando não me importar. Havia uma barreira invisível entre mim e elas, e eu não sabia como entrar.

Meus olhos vagaram pela mesa, o café esfriando na xícara enquanto minha mente corria por todas as opções de atividades, e por nenhum caminho que eu realmente quisesse seguir.

[...]

O refeitório seguia barulhento, com risadas e conversas cruzadas entre as mesas. Eu estava perdida em meus pensamentos, girando a colher no café frio quando o som de passos suaves chamou minha atenção.

Levantei o olhar a tempo de ver Boris atravessar o salão, seu andar desleixado e sem pressa. Ele era magrelo, com os cabelos sempre bagunçados de um jeito que parecia calculadamente desinteressado. Ninguém parecia notar sua chegada, e isso me fez sentir uma pontada de empatia por ele.

Ele passou pela mesa de frutas sem dar muita atenção ao resto. Estendeu a mão com um movimento despreocupado e pegou um pequeno pote de uvas, jogando uma delas na boca enquanto ainda andava. Seus olhos, tão distantes quanto sempre, pareceram vagar por um segundo, até que ele se aproximou da minha mesa.

Sem dizer nada, ele puxou uma cadeira e se sentou à minha frente, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. Eu não consegui disfarçar a surpresa, minhas sobrancelhas se erguendo levemente enquanto ele mastigava outra uva, me encarando como se estivesse esperando eu dizer algo.

— Café da manhã interessante — ele comentou, jogando mais uma uva na boca, e um meio sorriso quase preguiçoso apareceu no canto dos seus lábios.

Eu apenas assenti, sentindo o silêncio entre nós, aquele silêncio que, de algum jeito, parecia mais confortável do que as conversas ao redor.

— Decidiu o que vai fazer hoje? — Ele perguntou casualmente, e por um momento, parecia que ele sabia exatamente o que estava passando pela minha cabeça.

— Ainda não — respondi, me encolhendo na cadeira, tentando ocupar o menor espaço possível.

Boris me observava com aquele olhar tranquilo, mas que parecia enxergar mais do que eu estava pronta para expor. Ele era bonito de um jeito discreto, sem esforço, e às vezes, só o fato de ele estar por perto me deixava desconfortável, uma vergonha estranha que eu não sabia de onde vinha.

Ele percebeu meu jeito retraído e deu um sorriso de canto, como se estivesse se divertindo com a minha tentativa de me encolher. Seus olhos vagaram pelo refeitório, observando ao redor antes de voltarem para mim.

— Gosto do seu cabelo — ele disse de repente, os olhos fixando-se nas mechas que caíam sobre meus ombros. Seu tom era casual, quase distraído, mas a atenção que ele deu ao meu cabelo fez meu coração dar um leve salto.

Eu abri a boca para responder, mas antes que qualquer palavra pudesse sair, senti uma presença próxima. O grupinho do meu irmão, Patrick, passou por nós. O refeitório pareceu mudar de temperatura, o ar ficando mais denso, mais pesado. Boris desviou o olhar para eles, e eu senti a tensão se instalar como uma névoa invisível.

Patrick, com sua postura sempre controladora, parou em frente à minha cadeira. Ele me olhou por um longo momento, os olhos familiares, mas distantes. Fazia meses desde a última vez que ele tinha falado comigo, e agora, aqui estava ele.

— Oi, S/N — ele disse, a voz baixa, quase formal.

Minhas mãos tremeram sob a mesa. Eu queria me levantar, correr até ele, abraçá-lo com toda a saudade que estava acumulada em mim. Mas meu corpo parecia congelado no lugar, a paralisia me prendendo na cadeira, incapaz de agir.

Ele suspirou levemente, como se estivesse cansado, e estendeu a mão. Nela, havia um envelope amassado.

— Mamãe pediu para eu te entregar isso — ele disse, a voz neutra, como se fosse apenas mais uma tarefa rotineira.

Olhei para o envelope na mão dele, sentindo uma onda de sentimentos misturados me invadirem. Eu sabia o que estava ali antes mesmo de abrir. Dinheiro. Sempre era dinheiro. Uma forma prática de tentar resolver o que não podia ser consertado.

Eu o peguei, meus dedos trêmulos tocando o papel fino, mas, ao invés de abrir, o devolvi para ele com um gesto rápido, quase mecânico.

— Não preciso — murmurei, sem sequer olhar para dentro.

Patrick franziu o cenho por um momento, parecendo surpreso com a minha resposta. Havia algo nos olhos dele, algo que não consegui decifrar. Talvez cansaço, talvez culpa. Ele hesitou, mas depois fechou a mão em volta do envelope e o guardou no bolso.

— Como quiser — disse, sem emoção, antes de se virar para ir embora.

Fiquei ali, olhando para o chão, tentando processar o que tinha acabado de acontecer. Queria tanto ter dito mais, ter quebrado aquela distância gelada que existia entre nós. Queria ter perguntado sobre nossa mãe, sobre como ele estava. Mas as palavras morreram na garganta, presas pelo orgulho, pela dor acumulada.

— Irmãos são chatos, né? — A voz de Boris quebrou o silêncio, trazendo-me de volta ao presente. Ele olhou para mim com um meio sorriso, como se entendesse que não era tão simples assim.

Eu apenas assenti, tentando conter o peso que me sufocava, mas o nó na garganta só apertava mais.

Depois do café, decidi que era hora de me distrair. O dia estava cheio de atividades, e eu precisava de uma saída. Ao lado de Boris, eu percebia que poderia parar de pensar na minha família por alguns instantes.

Ele me puxou para uma sessão de teatro improvisado, e, enquanto tentávamos nos soltar, percebi como sua presença era reconfortante. Ele não se importava com os olhares das outras pessoas, e isso me acalmava.

Mas a paz foi interrompida quando avistei Patrick novamente, à distância. Ele estava cercado por um grupo de amigos, rindo e contando alguma coisa, e, por um breve momento, me perguntei se ele sentia falta de mim. Se a nossa relação poderia ser diferente se apenas pudéssemos conversar. A imagem dele, tão à vontade, contrastava com a minha angústia interna, e eu me senti culpada por querer que ele se importasse.

— Ei, você está bem? — A voz de Boris me trouxe de volta ao presente. Ele estava mais perto agora, com um olhar curioso e preocupado.

— Só... pensando — respondi, tentando disfarçar. Mas a verdade era que eu estava cansada de pensar, de me preocupar com o que estava acontecendo entre Patrick e eu.

Ele balançou a cabeça, e eu me perguntei se Boris realmente entendia o peso do meu silêncio. Mas, por algum motivo, estava começando a acreditar que, pelo menos naquele momento, a companhia dele era o que eu precisava.

Juntos, nos perdemos nas atividades, entre risos e uma conexão inesperada. O calor do dia fazia com que os problemas parecessem distantes, e eu realmente desejei que aquele momento pudesse durar para sempre.

𝐜𝐡𝐚𝐫𝐦! boris pavlikovskyOnde histórias criam vida. Descubra agora