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— Está levando protetor solar? — A voz da minha avó soava como um eco distante, quase abafada pelo burburinho dos outros adolescentes que se aglomeravam ao redor.
Seus olhos corriam inquietos pelo estacionamento da escola, como se tentassem encontrar algo ou alguém, ou talvez prolongar aquele momento de despedida que ela não queria encarar.
Eu respirei fundo, sentindo o peso da mala em uma mão e o aperto no peito. O ônibus estava ali, com seu cheiro de metal velho, as portas ainda abertas, mas a qualquer momento aquilo seria definitivo. Mais alguns minutos e eu estaria longe.
— Sim, está tudo aqui — murmurei, forçando um sorriso, mas sem conseguir encará-la por muito tempo. Olhar para ela só fazia aquele nó na garganta ficar mais apertado. Eu sabia o que ela estava sentindo, e, em silêncio, sentia o mesmo.
Ela ajeitou minha camiseta, como se aquele gesto pudesse prolongar a despedida. — Coloquei vários pares de meias na sua mala. Não deixe de usá-las à noite, faz muito frio, sabe? — A preocupação transbordava em cada palavra, e seu toque carregava um carinho familiar, quase desesperado.
Tentei rir, um som fraco que não convencia nem a mim mesma. — Pode deixar, vovó, eu prometo. São só algumas semanas, vai passar rápido.
Ela também tentou sorrir, mas o sorriso não chegou aos olhos. Eles brilhavam de um jeito que me fez engolir em seco, porque eu sabia que ela estava segurando as lágrimas. — Pra mim, vão parecer uma eternidade.
Senti meu coração apertar ainda mais, e desviar o olhar foi uma forma de escapar daquele peso. Meus olhos vagaram pelo estacionamento e, de repente, pousaram no meu irmão, já embarcando no outro ônibus, mais à frente.
Ele não me olhava, não depois de tudo o que aconteceu. A distância entre nós tinha se tornado um abismo desde que os boatos começaram. Suspirei, sentindo um aperto no peito que eu conhecia bem. Aquele nó que não desaparecia, não importava o quanto eu tentasse ignorá-lo.
Minha avó também o viu, mas não disse nada. O silêncio entre nós era denso, cheio das coisas que não se falavam em voz alta. Era como se, ao evitar o nome dele, o peso fosse um pouco mais suportável.
Ela apertou minha mão de repente, num gesto que me pegou desprevenida. — Quando chegar, me envia um torpedo, tá? Só pra eu saber que chegou bem.
Eu balancei a cabeça, tentando dar um sorriso tranquilizador, mas meu estômago estava embrulhado demais para qualquer expressão de alívio. Dei um último abraço apertado nela, sentindo o cheiro de lavanda que sempre me acalmava, e me afastei, como se cada passo em direção ao ônibus fosse mais pesado que o anterior.
Assim que pisei no degrau, a porta do ônibus fez um rangido metálico que ecoou na minha mente como um alerta. Fui engolida pela sensação sufocante de estar sozinha, mesmo cercada de gente. O ônibus encheu rapidamente, e, de repente, tudo ao meu redor se transformou em um turbilhão de vozes abafadas e risos que não me incluíam. Era como se eu estivesse cercada por um mar de olhares, cada um deles carregando um fragmento de julgamento, uma lembrança dolorosa do que deixei para trás.
Há algumas semanas, meu pai se candidatou à eleição e ganhou. Mas não foi a vitória que marcou a cidade. Foi o que veio depois. Boatos corrosivos, daqueles que grudam como ferrugem, espalhando-se pelas bocas maldosas. Diziam que ele havia me oferecido a homens poderosos em troca de apoio político, favores sujos. E mesmo sem uma única prova, a cidade acreditou. A cidade me olhou como se eu fosse um segredo sujo e inconfessável. Meu pai, diante das acusações, voltou-se contra mim, como se eu fosse culpada pelos sussurros que varriam as esquinas.
E no meio de tudo, só minha avó ficou. Só ela acreditou em mim.
Respirei fundo, o ar pesado me queimando os pulmões, e caminhei pelo corredor do ônibus à procura de um lugar. Os olhos de alguns colegas me seguiam, e senti minha pele esquentar, cada olhar como um lembrete de que eu não pertencia a lugar nenhum.
Finalmente, achei um assento vazio no fundo. Caminhei até lá, desviando dos pés que se esticavam de propósito pelo corredor, como se fosse uma espécie de teste para ver se eu ainda tinha coragem de seguir em frente. Me abaixei para passar por eles e, ao me levantar, dei de cara com Boris. Ele estava sentado no banco ao lado, de fones de ouvido, o rosto virado para a janela como se nada no mundo pudesse incomodá-lo.
Por um momento, ele parecia completamente alheio à minha presença, mas então tirou os fones de ouvido e se levantou um pouco, dando espaço para que eu passasse.
— Obrigada — murmurei, tentando sorrir de forma educada, mas ele apenas assentiu, os olhos rapidamente voltando para a janela.
Quando me sentei, meu olhar foi inevitavelmente atraído para ele de novo. Boris parecia diferente dos outros. Havia um silêncio em torno dele que me intrigava, como se ele estivesse sempre em algum lugar distante, mesmo estando ali, ao meu lado. Ele ajeitou os fones de volta, mas antes me lançou um olhar de relance, e por um instante, parecia que o mundo inteiro ficou em silêncio também.
O reflexo da luz no rosto dele, as sombras dos galhos das árvores passando pela janela, criavam uma espécie de moldura ao redor de seus traços. Havia algo nos olhos dele, uma profundidade que não era comum em um garoto da nossa idade, uma seriedade que me fez questionar se ele sabia de alguma coisa sobre mim, se tinha ouvido os boatos.
Ele deu um sorriso de canto, um daqueles que são quase invisíveis, mas que dizem mais do que palavras. E naquele instante, meu coração bateu mais rápido, como se aquele sorriso tivesse derretido um pouco da camada de gelo que eu vinha carregando. Boris tinha um charme que não precisava de grandes gestos para se fazer notar. Seu cabelo escuro caía de forma despreocupada sobre a testa, e mesmo em sua quietude, ele parecia capaz de capturar toda a atenção ao redor.
Me perguntei, naquele segundo, se ele sabia. Se ele também pensava mal de mim, como todos os outros. Ou se, por trás daquela indiferença, havia algo que pudesse me entender, alguma dor silenciosa que ele também carregava.
Boris chegou à escola dias depois que os rumores começaram a se espalhar. Chegou no meio do furacão, mas mesmo assim, os boatos, como ventos insistentes, o alcançaram. Eu sentia que ele sabia. Mas, ao contrário dos outros, ele nunca tinha me olhado de forma acusatória. E aquele silêncio entre nós, no fundo do ônibus, parecia diferente, como se, por um momento, estivéssemos em um espaço só nosso, longe dos olhos que nos julgavam.
Uma das professoras entrou no ônibus, andando pelo corredor para verificar se todos estavam presentes.
— Vamos lá, pessoal, certifiquem-se de que não esqueceram nada, ok? O acampamento é longo, e não vamos voltar por nada! — Ela tentava manter um tom animado, mas a tensão no ar era evidente, como se todos estivéssemos prendendo a respiração antes do mergulho.
As portas do ônibus se fecharam com um som pesado, selando tudo o que eu estava deixando para trás. O zumbido do ar-condicionado preenchia o espaço, e o frio do ambiente contrastava com o calor que eu sentia por dentro. Boris voltou a colocar os fones, voltando para seu mundo particular, enquanto eu encostava a cabeça na janela, sentindo o vidro gelado contra a minha testa.
Olhei uma última vez para o estacionamento, e vi minha avó acenando. O olhar dela encontrou o meu, e naquele segundo, todo o amor, a preocupação e a saudade já se faziam presentes. Acenei de volta, engolindo a saudade que já estava ali antes mesmo de eu partir. E no fundo, mesmo sem saber como, eu desejava que aquelas semanas longe me trouxessem algo de bom, uma fuga, talvez, ou até uma chance de me encontrar de novo.
Mas, por mais que eu tentasse me convencer de que era só um acampamento, só algumas semanas, uma sensação de que nada seria mais o mesmo crescia em meu peito. Olhei de soslaio para Boris, que agora se balançava levemente ao som da música que só ele ouvia, e me perguntei se, no meio daquela viagem, ele também estava fugindo de alguma coisa.
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𝐜𝐡𝐚𝐫𝐦! boris pavlikovsky
Fiksi Remajadurante um verão que deveria ser uma fuga dos últimos acontecimentos, você embarca em um acampamento escolar, esperando passar os dias e noites com tranquilidade. tentando deixar o passado para trás, você conhece um garoto excêntrico, fã dos filmes...