Capítulo 19 - Travessia

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Meu caminho é de pedra

Como posso sonhar?

Travessia - Milton Nascimento

O toque suave da respiração de Miguel era a única coisa que me mantinha serena. Passei a noite em claro, velando por ele, monitorando sua febre que insistia em subir e descer. Cada vez que ele mexia a cabeça no travesseiro ou resmungava em sonho, eu sentia uma pontada de culpa no peito. Como pude deixar isso acontecer? Como pude me perder em outra coisa quando o que mais importa estava bem aqui, nos meus braços?

Roberto... Meu coração ainda acelerava toda vez que pensava no que aconteceu entre nós. A culpa vinha em ondas, mas junto dela, uma atração visceral que eu não conseguia controlar. A noite anterior não deveria ter acontecido. Não deveria ter me permitido chegar tão perto, e agora aqui estava eu, tentando consertar os pedaços que sobraram de mim mesma, enquanto meu filho precisava de mim mais do que nunca.

O céu lá fora começava a clarear, e eu sabia que não conseguiria dormir. Fiquei observando Miguel respirar, com a mão pousada de leve sobre sua testa, verificando a febre de novo e de novo. Quando achei que ele finalmente havia se acalmado, me levantei devagar, tentando me afastar sem acordá-lo.

Foi então que eu senti.

Aquele olhar.

O gelo percorreu minha espinha antes mesmo de eu erguer os olhos. E quando olhei, lá estava ele. Eduardo. Encostado na porta, braços cruzados, me observando com aquele olhar fixo, frio, como se estivesse me dissecando. Meu coração disparou. Não de medo imediato, mas pela certeza de que algo estava muito errado. Ele nunca me olhava assim quando tudo estava normal. Algo mudou.

— Bom dia — murmurei, a voz falhando de leve.

Ele não respondeu. Não se moveu. Apenas continuou a me encarar, como se estivesse esperando que eu fizesse a primeira jogada.

Miguel resmungou na cama, e eu soube que aquele confronto não poderia acontecer ali, não com meu filho tão perto. Respirei fundo, forçando a calma.

— Vamos lá fora — falei baixinho, mais para mim mesma do que para ele.

Com cuidado, me levantei e passei por Eduardo, sentindo seu olhar queimar nas minhas costas. Meu corpo inteiro estava em alerta, os nervos à flor da pele, como se soubesse o que estava por vir.

Caminhei até o ateliê, aquele espaço que costumava me trazer paz, agora se sentindo pequeno e sufocante. Eduardo entrou logo atrás de mim, fechando a porta com um clique suave que soou mais alto do que eu esperava.

— Onde você estava, Manuela? — a pergunta foi direta, cortante. Não havia raiva explícita, apenas uma ameaça velada.

— Eu já disse... Fui buscar o Miguel na casa da minha mãe. Ele estava mal, com febre — respondi, tentando parecer firme, mas a verdade é que eu sentia meu coração na garganta.

Ele deu um passo à frente, seus olhos escurecendo, como se estivesse me farejando. Eu sabia que ele não acreditava. Sempre soube que ele tinha essa capacidade de ver através das minhas mentiras.

— E a farmácia? — ele inclinou a cabeça, o tom da voz mudando, se tornando mais agressivo. — Qual farmácia? A essa hora da noite?

O silêncio se arrastou por alguns segundos, e eu sabia que precisava manter a história. Só que, por mais que eu tentasse, as palavras não vinham. Cada desculpa que eu pensava parecia frágil, quebradiça, como vidro fino prestes a estilhaçar.

— Eu... eu... Passei na farmácia que fica... perto da praça... — balbuciei, completamente perdida na minha própria mentira.

Ele riu, mas não era um riso de humor. Era cruel, como se estivesse se divertindo ao me ver enrolada.

Paixão nas Sombras | Capitão NascimentoOnde histórias criam vida. Descubra agora