Apesar de vocêAmanhã há de ser
Outro dia
Apesar de você - Chico Buarque
Ainda com os olhos fechados, o cheiro denso do café na cozinha me envolve como um manto sombrio, me puxando para fora da anestesia dos meus sonhos. Dias como esse, imersos na calmaria traiçoeira, me deixam inquieta, como se um presságio sinistro pairasse sobre o ar. Tento me convencer a continuar na cama, a me esconder da realidade que me aguarda, mas a inevitabilidade me chama. Sinto um frio na espinha ao me levantar e me arrastar até a cozinha, onde a mesa já está posta. Meu estômago se revira com a visão do ritual matinal que se repete, como um lembrete cruel das correntes invisíveis que me prendem aqui.
- Bom dia, preguiçosa - sua voz é uma mistura de ironia e desprezo, e o sorriso em seu rosto é uma máscara para o perigo que esconde. - Achei que você não levantaria tão cedo hoje.
A sua tentativa de gentileza não me engana, o fato de ele ter preparado o café é uma facada sutil em minha tentativa de escapar da sua presença. O cheiro do café é quase insuportável, misturado com a amargura que sinto no fundo da garganta, tento não mostrar a repulsa, mas o beijo que ele me dá ao se aproximar faz a bile subir novamente, retribuo seu beijo, engolindo a sensação de nojo. Eu deveria estar grata, não é? Ele está tentando, de alguma forma, tem sido mais atento ultimamente, mas isso só serve para tornar a sua próxima explosão ainda mais imprevisível, seu entusiasmo para entrar no BOPE é um prenúncio de que a qualquer momento tudo pode se desmoronar.
- Amanhã é meu último dia como sargento da PM. Vou finalmente me livrar desses filhos da puta - diz ele, como se não fosse um deles também. Meu sorriso é uma fachada para a raiva que sinto, luto para não revirar os olhos diante da sua presunção.
Ouço passos pequenos e apressados vindo do corredor anunciando a entrada de Miguel, com seu pijama de Homem-Aranha e o rosto amassado pelo sono, ele vem até mim, e eu o coloco em meu colo, tentando me ancorar no calor do seu corpo e no aroma familiar do seu cabelo. É uma âncora na tempestade que é minha vida.
- Bom dia, meu príncipe! - digo, esforçando-me para que minha voz não trave.
- Para, mamãe. Já falei que estou grande para ser chamado assim - responde ele, mas a infância ainda brilha em seus olhos. Eu o encho de beijos, tentando afastar a tristeza que ameaça se revelar.
- Chega, está bom. Eu deixo você me chamar de príncipe, mas só entre a gente, ok?
- Deixa o moleque em paz - Eduardo intervém, sua voz fria e desdenhosa, me atingindo como um punhal. - Toma seu café e vai tomar seu banho. Papai vai te levar para a escola hoje de viatura, quer?
- É sério, papai? - pergunta Miguel, seus olhos se iluminando com a promessa de uma aventura.
- É sim, pirralho. Se arruma logo, que eu já estou de saída.
Miguel corre para o banheiro, e eu olho para Eduardo com uma raiva crescente, ele sabe o quanto o seu trabalho é perigoso e como me sinto aterrorizada com a ideia de nosso filho envolvido nesse mundo sombrio.
- Não começa, Manuela. Foi você quem pediu para eu passar mais tempo com o menino! - Eduardo explode, batendo com a mão na mesa, um gesto que me faz saltar. - Não quero discussões, mas não vamos transformar isso em um circo! Deixa que eu sei o que é melhor para o meu filho.
A ironia quase me faz rir, mas eu não me contenho. - Você quase o matou uma vez, Eduardo! - Antes que eu possa me defender, o tapa em meu rosto me atinge com uma dor aguda, ergo a cabeça, não quero que ele veja minhas lágrimas, mesmo que a dor seja quase insuportável.
- Cala a boca antes de falar merda para mim sua cadela. Está entendendo, Manuela? - ele fala pausadamente, com olhos que queimam com um brilho predatório. Engulo seco e aceno, a sensação de derrota é palpável.
- Ótimo, agora vai ver se o moleque precisa de ajuda com algo.
Dou passos largos até o banheiro, onde encontro Miguel saindo do banho, pego a toalha na bancada e o envolvo, forçando um sorriso enquanto seu olhar curioso e preocupado busca respostas em meu rosto.
- Que isso, mamãe? Tá tudo bem? - ele pergunta, seus olhos cheios de preocupação.
- Está tudo ótimo, meu amor. Vamos nos arrumar, o papai já está te esperando.
Cuido de Miguel como faço todos os dias, dou-lhe o café da manhã enquanto Eduardo o aguarda na sala, absorvido nas notícias do dia. A TV explode com manchetes de violência e operações, a voz do Capitão Nascimento ecoando como uma ameaça constante, a ideia de Eduardo se juntar a esse mundo é uma sombra que paira sobre mim, uma sentença de morte que eu não consigo reverter.
Quando Miguel termina de escovar os dentes, corre até Eduardo, que o ergue em seu colo com um sorriso frio. O contraste entre sua aparente alegria e a marca avermelhada em meu rosto é quase insuportável. Eduardo se aproxima de mim, pressiona um beijo na bochecha onde me atingiu, uma presença perturbadora e distante, eu disfarço minha irritação pelo bem de Miguel, forçando um sorriso enquanto me despeço.
Miguel e Eduardo saem, e eu me dirijo ao banheiro para examinar o estrago, a dor é intensa, mas a marca não é tão ruim quanto eu temia. A sensação de raiva e tristeza é esmagadora, mas eu me recuso a chorar, já passei por dias piores e repito isso para mim mesma como um mantra. Penso em Miguel e em quanto ele ama seu pai, não quero que ele cresça sem o pai, como eu cresci.
Decido dar uma faxina no meu ateliê, é o meu refúgio e o único lugar onde posso tentar recuperar o controle da minha mente. Organizar meu espaço é a única forma de lidar com a desordem que domina minha vida. Coloco minha playlist e a música de Chico Buarque toca como um presságio. "Apesar de Você" é uma nota de esperança amarga, uma promessa de que amanhã pode trazer algo novo.
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Amores eu não irei estabelecer metas de curtidas e nem de comentários aqui ok? Mas é claro que é muito importante e necessário ter o feedback de vocês, então não sejam tímidos, comentem! Estarei sempre aberta para a opinião de vocês.
O capítulo foi curtinho, mas é com imenso orgulho que eu introduzo para vocês a Manu, ela já tem um espaço enorme no meu coração e agora posso dividir essa personagem tão especial com vocês. Espero que ela também conquiste o coração de vocês tanto quanto conquistou o meu!
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Paixão nas Sombras | Capitão Nascimento
FanficManuela está presa em um casamento sombrio, onde as promessas de amor se tornaram ecos distantes diante dos abusos que enfrenta diariamente. Seu marido, Eduardo, um policial corrupto e manipulador, é um homem brutal, cujas ações dentro e fora de cas...