Epílogo

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Hiner corria o mais rápido que podia, o calçamento de pedras duras e irregulares machucava seus pés, mas ele não parava, mesmo com as pontadas no abdômen causadas pelo esforço desesperado. Seus olhos ardiam, queria acreditar que era por conta do cansaço, mas sabia que era por conta das lágrimas que derramava sem controle. Seu coração era um turbilhão de sentimentos que ele não conseguia decifrar ainda.

— Vamos, idiota! Por que você não consegue? — perguntava a si mesmo.

Usava o feitiço para alterar sua aparência, mas, toda vez que tentava, só conseguia se transformar em Spes. Nem precisava se olhar no espelho para ver as madeixas vermelhas. O peso das orelhas no topo da cabeça, sempre tão presente e costumeiro, nem se faziam sentir. Ele simplesmente sabia que havia se transformado no Lagomorfo. Conhecia a sensação, sabia como era ser seu alter ego. Foram tantos anos naquele disfarce, não tinha como não saber.

Parou no meio de uma rua deserta, sem se preocupar se alguém apareceria ali. O desespero e ansiedade dominavam seu cérebro como uma cobra sufocando sua presa. Encostou-se em um muro, em crise. Esfregou as mãos no rosto e sentiu sua barba mal cuidada áspera contra as palmas. Precisava se controlar e voltar ao plano.

Mas qual o plano agora? Não tinha mais plano. Não tinha planejado mais nada além daquela vingança fracassada.

Achou que sentiria raiva, mas todo o seu corpo era consumido pela culpa. Por ter enganado seus amigos, por ter mentido para Lithor, por não ter seguido seus sentimentos, por ter falhado com Evely...

Sua irmã... O que ela iria pensar se o visse nessa situação?

Ela o abraçaria e o animaria, como sempre fazia quando o via entrando nessa espiral de pânico e aflição. Foi sua rocha em tantas ocasiões, o principal motivo por ainda estar vivo. Hiner respirou fundo e seus batimentos cardíacos se acalmaram, pelo menos um pouco, enquanto se lembrava do sorriso dela. Por ela, principalmente por ela, Hiner continuaria a lutar.

Resignado, assumiu novamente a forma de Spes, que ainda era relativamente anônima, e voltou a correr para fugir de Reganta. Forçou seus pensamentos a buscarem as memórias de Evely, a primeira delas, para focar e se concentrar no que precisava fazer.

O orfanato onde morava era bonito, mas sempre muito escuro e úmido, o que não tornava o ambiente muito agradável. Mesmo assim, a tia Luabe se esforçava para fazer daquela modesta construção um lar para seus sete protegidos. Ela tinha seus volumosos cabelos sempre presos e amarrados por lenços de cores variadas, que contrastavam com as paredes de pedra escura e quartos sem cor.

Naquela manhã fria e chuvosa, a oitava criança chegava ao orfanato. Hiner, curioso como qualquer menino novo, subiu às pressas os degraus acarpetados até alcançar o quarto das meninas, que tinha a janela que dava para a rua. Viu quando a menininha era deixada por um homem mal encarado e impaciente, que a entregou como uma encomenda e foi embora sem se despedir. Tia Luabe ofereceu um abraço, mas a garotinha só abaixou a cabeça e entrou pela porta.

Durante todo o dia, Hiner tentou se aproximar da novata, mas ela não queria companhia, o que era de certa forma compreensível. No entanto, o menino, com seu espírito bondoso, sentia que era sua função cuidar dela e ajudá-la a se sentir em casa naquele lugar novo. Desde cedo querendo cuidar dos outros.

À noite, quando todos já tinham ido dormir e as crianças deveriam estar debaixo das velhas cobertas de retalhos, passinhos curtos e apressados passaram em frente à porta do quarto dos meninos, chamando a atenção de Hiner. Embolou-se no seu cobertor e caminhou pé ante pé para fora do aposento. Suas meias verdes felpudas abafavam qualquer ruído que poderia acordar os outros.

No corredor do piso superior um vento frio entrava por alguma janela deixada aberta, fazendo o pequeno ajustar o cobertor em seus ombros para se agasalhar melhor. A iluminação reduzida parecia deixar o ambiente ainda mais gelado, mas isso era só impressão de uma criança amedrontada. Por conta disso, ele se apressou para achar a coleguinha, encontrando-a logo em seguida.

Ela estava sentada no último degrau da escadaria, encolhida, abraçando o próprio corpo. Seus cabelos pretos e crespos, da mesma cor do manto que usava, estavam presos em dois pompons nas laterais da cabeça. Tirando o tiritar de frio, ela estava imóvel, mantendo seus olhos fixos na porta de entrada. Ao vê-la naquela posição, Hiner sabia que ela estava esperando alguém magicamente aparecer para buscá-la.

Ele já tinha passado algumas noites assim.

Poderia não resolver os problemas dela, mas um ombro amigo ajudaria a carregar o peso da tristeza e espantar a dor da solidão. Resoluto, foi até a menininha.

— Oi! Meu nome é Hiner, e o seu?

Nada. Ela nem reagiu à sua presença. Mas isso não seria o suficiente para fazer o corajoso menino desistir. Ele voltou a falar, atropelando as palavras, como de costume, cheio de energia:

— Eu sei que é meio assustador chegar em um lugar novo assim, do nada, com uns desconhecidos, mas eu prometo que o pessoal aqui é legal. A comida é boa também, a tia Luabe faz umas almôndegas sensacionais. Inclusive amanhã é dia de almôndega! Hummmm! Quer sentar comigo na hora do almoço?

A garotinha ainda não respondeu e, para piorar a ansiedade do pequeno Hiner, começou a chorar baixinho. Inteligente como sempre foi, sabia que deveria tentar uma nova abordagem. Observou a menina na tentativa de descobrir mais a respeito dela, talvez algo que os ligassem, algo com que pudesse se conectar, mais íntimo.

Foi quando percebeu que ela estava abraçando algo em seus braços trêmulos.

— Esse é um amiguinho seu que você trouxe? Qual o nome dele? — perguntou, inclinando-se para a frente.

A menina finalmente desviou o olhar da porta e encarou Hiner. Ela assentiu com a cabeça devagar e um indício de sorriso despontou em seus lábios, que pareceu iluminar levemente seu rosto de pele escura. Com timidez e um pouco de medo, abriu seus braços um pouco e exibiu seu coelhinho de pelúcia de pelos vermelhos bem vivos. Com um fio de voz, respondeu:

— Spes.

Os Guerreiros do DestinoOnde histórias criam vida. Descubra agora