CAPITULO 20

1 0 0
                                    


A escuridão me envolvia, densa e silenciosa, como o abraço frio de algo que existia além da morte, algo ancestral e insondável. Eu era apenas uma criança, talvez nos meus quatro anos outra vez, mas carregava o peso de uma existência inteira. O eco do que eu já havia vivido e perdido se dissipava na névoa ao meu redor, um vazio sem fim, sem paredes, sem teto, sem chão. Estava ali, caído, com os joelhos dobrados sobre um piso invisível, como se flutuasse em meio ao nada. Minhas mãos pequenas tremiam ao segurar meu próprio corpo, e lágrimas escorriam por meu rosto, mas naquele lugar, até as lágrimas pareciam secas, como se a própria essência da vida tivesse sido sugada para sempre.

Abracei meu próprio peito com minhas mãos frias e trêmulas, tentando em vão aquecer-me. O vazio ao redor era impiedoso. O escuro parecia se estender eternamente acima e abaixo de mim; era o meu céu e o meu chão. Ali, onde não havia calor, nem consolo, tudo parecia indiferente. Chorava como uma criança perdida, um som frágil, abafado, que se desfazia no vazio. Minha voz sumia assim que deixava meus lábios, absorvida pelo silêncio, como se até o som fosse sugado por aquela escuridão imensa.

De repente, senti algo. Uma presença.

Primeiro, foi um leve arrepio, uma mudança quase imperceptível no ar ao meu redor. Era como se a atmosfera estática ganhasse vida, transformando-se em algo pulsante, denso. A presença era imensa, envolvente, como se abraçasse o espaço e distorcesse o tempo ao seu redor. Eu não precisava levantar os olhos para saber que ele estava lá, observando-me na escuridão. Era uma sombra mais densa que o próprio escuro, e sua existência parecia um peso que me esmagava, me oprimia, sem que ele precisasse mover-se ou sequer pronunciar uma palavra.

A figura se aproximou. Ele estava envolto em um manto de trevas que pareciam serpentes vivas, ondulando e torcendo-se ao seu redor. Não fazia som algum ao caminhar, mas eu sentia sua chegada com uma clareza terrível, como uma onda invisível e esmagadora. O silêncio que o acompanhava era absoluto, quase sufocante, mas, ainda assim, havia algo nele que gritava, como um murmúrio profundo, que reverberava dentro de mim, ecoando com uma intensidade que não me assustava. Pelo contrário, uma curiosidade infantil e quase ingênua me puxava para ele, como se eu precisasse compreender o que aquele ser realmente era.

- Elliot. - A voz dele ressoou, baixa e profunda, como um trovão abafado, reverberando no vazio ao nosso redor. Cada sílaba soava como se fosse capaz de partir uma montanha ao meio, um som que era ao mesmo tempo sedutor e perigoso, como veludo e lâmina.

Levantei o olhar, com o coração acelerado e os olhos arregalados. Ele estava diante de mim, uma presença colossal e envolta em sombras. Onde deveriam estar seus olhos, duas chamas rubras queimavam, fixando-se em mim com uma intensidade quase hipnótica, como se ele pudesse ver através de mim, além da minha carne e ossos, até o mais profundo da minha alma. Ele não me olhava com piedade, nem com o carinho que um adulto daria a uma criança indefesa. Não. Ele me observava com uma curiosidade faminta, quase animal, como se eu fosse um enigma a ser decifrado. A sombra ao redor dele parecia oscilar, viva e pulsante, como se fosse uma extensão de seu próprio ser.

Com os joelhos ainda vacilantes, levantei-me com dificuldade, os movimentos lentos e inseguros. A figura era tão imponente que o medo paralisava meus músculos, mas a curiosidade era ainda maior. Me aproximei dele, passo a passo, levantando o rosto para fitá-lo, meus olhos infantis brilhando com uma mistura de temor e fascínio.

- Belial. - Sussurrei o nome com uma voz pequena e trêmula, um som frágil que parecia mal quebrar o silêncio ao nosso redor. Não sabia como conhecia aquele nome, mas, de algum modo, ele me era familiar. Pronunciá-lo era como lembrar-se de algo há muito esquecido, algo que sempre esteve lá, em um canto obscuro da minha mente.

A sombra sorriu. Ou pelo menos eu achei que fosse um sorriso, uma leve distorção nas sombras de seu rosto que parecia uma expressão de zombaria ou talvez de pesar. Mas ali não havia empatia; seus olhos não revelavam nenhum traço de compaixão. Na verdade, havia algo de implacável em seu olhar, como se ele já tivesse visto outras almas perdidas e soubesse exatamente o que fazer com cada uma delas. Eu era apenas mais uma.

- O pós-morte encarna o momento de sua vida humana mais feliz. Sua felicidade se partiu bem precocemente - ele disse, com uma voz que soava como o rolar de pedras. Estendeu uma mão ossuda, envolta em sombras que serpenteavam ao seu redor como serpentes vivas. - Sua alma... me causa uma fome única. O que há de diferente em você, garoto?

Olhei para aquela mão fria e ameaçadora, e uma súplica escapou dos meus lábios quase sem que eu percebesse.

- A dor... o senhor pode me tirar a dor?

A mão dele pairava diante de mim, a centímetros de distância, fria e sombria, mas irresistível. Eu sabia que deveria ter medo, mas ao invés disso, uma estranha sensação de paz me invadiu. Meus dedos pequeninos se estenderam na direção de sua mão, hesitantes, mas tomados por um desejo inexplicável de tocá-lo, como se sua presença fosse a única coisa real naquele mundo vazio. Meu peito se enchia de uma vontade imensa de encontrar consolo ali, na escuridão que ele representava.

- Não, mas posso realizar seus mais profundos desejos, garoto. Você só precisa se entregar a mim. - Ele inclinou o rosto até ficarmos quase face a face, e eu pude sentir o frio de seu hálito, um vento gélido que me causava arrepios. - O mundo nunca teve planos de ser gentil com você. O que você quer de mim não é liberdade, mas uma troca. Sua dor por poder. Seu desespero por força. Essa é sua escolha. Não sairei do seu lado até que tudo se realize, e então, tomarei sua alma. Agora, faça seu pedido.

Minhas palavras ficaram presas na garganta. Era como se algo se fechasse dentro de mim, impedindo que eu as pronunciasse em voz alta, mas meus lábios se moveram, e ele soube. Ele compreendeu, sem que eu precisasse dizer nada.

Um sorriso cruel e satisfeito dançou nos lábios dele, e um brilho intenso tomou seus olhos. - Assim seja, Elliot. Agora, estamos presos, como noite e escuridão, como fogo e sombra.

A escuridão ao redor de nós começou a pulsar, ganhando vida, fechando-se sobre nós como uma tempestade de sombras que se tornava cada vez mais densa. Era como se o próprio vazio estivesse selando um pacto, um juramento entre nós. Senti um peso cair sobre meus ombros, uma carga que eu sabia que nunca mais poderia soltar. A partir daquele momento, meu destino estava traçado, entrelaçado ao dele de uma forma que eu ainda não compreendia completamente.

Aquele era o início de algo muito maior do que eu, algo que eu apenas começava a vislumbrar, mas sabia que estava condenado a seguir adiante, seja para o que me esperasse na escuridão ou para o que viesse a surgir além dela.

O Sussurro Do Silêncio Onde histórias criam vida. Descubra agora