CAPÍTULO 19

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Dois anos atras
Rodivia próximo a cidade de Eldengrove
20h30 da noite.

O ronco do motor embalava o carro enquanto eu mantinha os olhos fixos no livro à minha frente, o som abafado dos meus fones de ouvido preenchendo minha mente, isolando-me do mundo ao redor. A luz dos postes a noite, projetavam sombras nas páginas, tornando a leitura mais difícil, mas eu insistia. Não me importava com o conteúdo do livro; era apenas uma forma de fugir, de me esconder da realidade. Entre uma frase e outra, eu podia ouvir ecos distantes das vozes dos meus pais, alteradas pela música que preenchia meus ouvidos. Mesmo que eu não conseguisse entender claramente o que diziam, a intensidade dos tons me perturbava

Desviei o olhar para o banco da frente e percebi as mãos do meu pai segurando o volante com força, os dedos rígidos e as articulações brancas. Sua voz soava abafada, mas eu podia sentir a irritação que emanava dele, a raiva que ele segurava com dificuldade.

- Não vou mais discutir sobre isso Mary! - ele exclamou, a voz tão aguda que transbordava pelo carro, atravessando meus fones. - Elliot tem um propósito, ele não vai desistir! Temos uma tradição! Uma crença! E isso não vai mudar!!

Minha mãe, Mary, estava virada para ele, os olhos marejados, sua expressão carregada de cansaço e desespero. Ela apertava as mãos no colo, como se tentasse conter as emoções que transbordavam, mas seu corpo tremia de leve, a exaustão e a tristeza visíveis em cada linha do seu rosto.

- Mas ele ja tem vinte anos, Thomas! Que criança vê e vive o que ele vive desde os cinco anos!!! - a voz dela trêmula e cheia de dor que parecia rasgar o ar. - Esses rituais... essas cerimônias... não são normais, você sabe disso! E ele está sofrendo!! Meu filho não é o mesmo. Você não vê o que isso está fazendo com ele?!
Comigo?!

Ela se virou, os olhos se cruzando com os meus pelo espelho retrovisor. Vi seu rosto, marcado pelo sofrimento, e um misto de vergonha e tristeza passou por mim. Ela sabia o que eu estava passando, mas, ao mesmo tempo, estava presa, assim como eu. Desvio o rosto de seu campo de visão e prefiro não inflamar ainda mais a dor que ela sente com minhas expressões apáticas.

- Mary, já conversamos sobre isso - meu pai rebateu, sua voz firme e imutável, como uma rocha. - Você sabe o que isso significa para nossa família, para nossa linhagem. Elliot tem um papel importante a cumprir. Não estamos criando uma criança comum, estamos criando alguém com um propósito maior. Ele entende, ele sabe o que é esperado.

Mas ele estava errado. Eu não entendia nada. O que eu sabia era que tudo parecia uma corrente que me sufocava, que me aprisionava em um destino do qual eu não poderia escapar. Eu não era especial, não era um escolhido. Eu era um garoto que mal sabia quem era, mas que já tinha desistido de ter uma vida fora daquele inferno. Anos de rituais, de ensinamentos, de sacrifícios, tudo para satisfazer as exigências de uma tradição que, para mim, era um fardo impossível de carregar.

Olhei para minha mãe novamente, e o desespero nos olhos dela me atingiu como um golpe. Ela estava em pedaços. Sua fragilidade era evidente, o peso de tudo isso estava corroendo-a aos poucos. Eu sabia que ela lutava por mim, mas também sabia que estava cansada demais para resistir, e talvez, e uma parte de mim, estiva tão exausta quanto ela.

Voltei a encarar meu livro, os parágrafos borrados e as palavras sem sentido. Mesmo tentando me perder entre as páginas, nada parecia suficiente para desviar minha mente daquela realidade. Meu pai continuava a falar, mas as palavras já haviam se tornado um ruído de fundo, um lembrete constante do vazio ao qual eu estava preso.

De repente, um clarão surgiu pela janela do carro, e o som ensurdecedor de uma buzina preencheu o ar. Tudo aconteceu em um segundo. Um segundo que parecia infinito e, ao mesmo tempo, veloz demais para ser capturado.

O carro foi atingido com uma força brutal. Soltei o livro enquanto meu corpo era lançado para o lado, e o cinto de segurança cortou minha pele quando fui jogado contra o assento. Tudo se misturava: o cheiro de borracha queimada, o barulho de metal se dobrando e os gritos abafados dos meus pais. Era como se o mundo estivesse desmoronando em câmera lenta, e cada detalhe ficava gravado na minha mente com uma clareza quase absurda.

Senti o impacto quando o carro começou a girar, como se tivéssemos sido arrancados do chão e lançados no ar. As janelas explodiram em estilhaços de vidro que cortavam minha pele, pequenos fragmentos brilhantes que pareciam flutuar à nossa volta. O mundo girava, o chão, o céu, tudo se misturava em um borrão indistinto enquanto o carro capotava. O som do metal esmagado parecia se fundir com o meu coração, que batia desesperadamente contra o peito.

Um grito escapou de mim, mas foi engolido pelo caos ao redor. Olhei para frente e vi o rosto de minha mãe, seus olhos arregalados, a expressão paralisada pelo medo. Ela estendeu a mão para mim, mas o movimento foi interrompido pelo próximo impacto. E então, tudo se apagou.

A sensação de peso me pressionava, uma escuridão profunda envolvendo meu corpo e meus sentidos. Por um momento, achei que aquilo era o fim, que o vazio havia finalmente me consumido. Mas, aos poucos, a consciência voltou, trazendo com ela uma dor lancinante. Abri os olhos e vi o carro tombado de lado, os destroços espalhados ao redor. Tentei mover os dedos, mas cada movimento trazia uma nova onda de dor.

Olhei ao redor, buscando sinais de vida, buscando meus pais. Meu pai estava debruçado sobre o volante, o corpo imóvel. Minha mãe, ao seu lado, com o rosto pálido, os olhos fechados, parecendo uma estátua de cera. A realidade me atingiu com força, e uma angústia indescritível tomou conta de mim.

Foi então que, entre os destroços, eu o vi. Victor, parado ao lado do carro, o olhar fixo em nossa direção. Havia uma expressão no rosto dele, algo que eu nunca entenderia completamente. Um sorriso quase imperceptível, que rapidamente desapareceu quando ele sacou o telefone e ligou para a emergência, fingindo uma preocupação que eu sabia que não era real.

Meu corpo tremia, não apenas pela dor física, mas pela dor que nascia no fundo da minha alma. A imagem dele ali, como um espectador frio, tornou-se uma ferida que jamais cicatrizaria. Fui tomado por uma mistura de raiva, medo e desespero que nunca tinha experimentado.

- Não se preocupe... talvez cheguem a tempo - Victo olha para mim de cima e pisa na minha mão com força. Eu sinto os cacos de vidros perfurarem minha pele e o grito cortar minha garganta - Aquele velho maldito, nunca mais vai cruzar meu caminho outra vez - Ele pisa cada vez mais forte e seu sorriso se faz cada vez mais largo. Saboreando a visão de poder e vitória que não conseguia entender.

Fechei os olhos e me deixei cair no vazio, o choque e a dor finalmente me arrastando para a escuridão, onde nada mais existia.

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