Primeira Parte - Capítulo 10

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Capítulo 10
Lash nem chegou a ir para casa depois da escola, sabia que sua mãe não estaria lá o esperando com o almoço pronto, então passou em uma barraquinha de sanduíches perto da escola e foi direta para a biblioteca, sabia que ela não fechava durante o dia, por isso pensava em ganhar tempo para sua pesquisa.
Caminhando pelas calçadas, indo em direção ao pequeno centro da cidade, Lash sentia algo diferente nele, algo que ele nunca havia sentido ou notado antes. Era como se o ar formigasse em sua pele, enquanto caminhava sentia certo atrito em seus braços, mãos, rosto e em qualquer pedaço de pele que estava exposto.
Caminhava como se tivesse que abrir caminho pelo espaço, ou pelo menos se sentia assim, talvez todos sentissem isso e não compartilhavam, o que era perfeitamente normal, sentir coisas e não compartilhar, mas aquela sensação era estranha, diferente de tudo que já havia passada.
Como havia pensado antes, não podia descartar a hipótese de todos se sentirem assim, sendo algo completamente normal, porém ninguém nunca falou nada. Ele se sentia como se caminhasse dentro de um lago, caminhando pela água, sentindo ela tocar todo o seu corpo, molhar sua pele, interagir com ela. Invadir seus olhos, narinas e orelhas, fazendo ele ficar sem ar. O que sentia agora era mais ou menos isso, mas era um pouco mais leve que a água.
Também não conseguia comparar isso à brisa, pois a brisa se movia, ou era movida, ele não sabia explicar, mas o que ele sentia era algo que estava presente no ar, no espaço à sua volta, algo que sempre esteve ali mas que ele nunca havia notado, pelo menos não até agora.
Virando as esquinas e seguindo por calçadas e faixas de segurança, ele tentava se concentrar no que sentia, queria saber o que era e tentava reparar nas outras pessoas, ver se elas sentiam as mesmas coisas, mas nenhuma parecia dar nenhum sinal.
Ele pensava no livro, Precisamos entender que, como fomos criados a partir dessas energias, as temos fluindo em nosso corpo e interagindo com as energias do espaço à nossa volta. E ele se sentia assim, sentia o corpo inteiro formigando, sentia algum tipo de energia correndo em seu corpo, energia que vinha do ar, de volta dele, vinha das pessoas, das coisas, passava por ele e fluía para fora, seguindo seu caminho.
Cada vez mais as palavras do livro faziam sentido para ele. Seu pulso esquentava enquanto se concentrava cada vez mais. Respirava profundamente enquanto andava, tentava sugar essa energia para dentro dele, tentava fazer com que ela o reconhecesse como algo a que ela poderia se doar.
Pois era assim que as energias funcionavam, era preciso certa entrega do indivíduo para que a interação acontecesse. Em um mundo com mais de 7 bilhões de pessoas as energias apenas passavam por todos, apenas vagando, preenchendo o espaço, buscando um objetivo talvez.
Lash se perdia nesses pensamentos. Quanto mais se concentrava no assunto mais perguntas surgiam. Ele pensava nas energias que o livro descrevera, nas interações, reconhecia em seu corpo essa interação acontecendo agora, mas não sabia o que fazer, não sabia por que ele conseguia fazer aquilo e as outras pessoas não.
Pensava nas energias como entidades vivas, pois era assim que fazia sentido, um grande corpo, ou na verdade vários grandes corpos, preenchendo todo o espaço, estando no meio de tudo, entre tudo, fazendo tudo funcionar, tornando tudo possível. Corpos passando pelas coisas, pelas pessoas, apenas buscando alguém que pudesse senti-los mais do que os outros, alguém que pudesse interagir com eles, alguém que se sentisse parte deles e se entregasse a esse sentimento.
Ele se sentia assim agora, se sentia parte pequena de um corpo maior, seu corpo andava pelas ruas da cidade onde morava, mas sua mente estava em outro lugar, era parte de outra coisa, se sentia parte de outra coisa, um grande corpo.
Enquanto caminhava olhava as outras pessoas e não entendia qual o motivo de elas não sentirem o mesmo, talvez ele se sentisse assim porque tinha o colar, aquele que apareceu sem explicação em seu quarto, aquele que, segundo ele, o fizera explodir as luzes do refeitório mais cedo na escola, o mesmo colar que agora fazia o seu corpo inteiro tremer, parecendo levar pequenos choques.
Uma buzina alta o acordou, um cantar de pneus, pessoas espantadas, um carro em alta velocidade.
- Não viu o sinal não? Maluco!
O conversível vermelho desviou bem a tempo de ele conseguir se esquivar e voltar para a calçada, não tinha visto o sinal fechar e agora era alvo da visão curiosa da maioria dos pedestres que esperavam junto a ele para atravessarem a rua.
Sua estranha conexão com as coisas à sua volta, pois era assim que ele chamaria, coisas, pelo menos até saber ao certo do que se tratavam, havia sido interrompida, quebrada, o corpo já estava normal e o pulso, frio. Teria de tentar novamente mais tarde.
Assim que o sinal abriu, ele e uma massa andarilha de pessoas apressadas cruzaram a faixa de segurança e se viram do outro lado da rua, a biblioteca era naquela quadra então ele se aliviou ao ver que já havia chegado.
Mesmo não estando mais ligado às coisas à sua volta, se sentia estranho, sabia que havia vindo da escola naquele momento mas não tinha nenhuma lembrança do trajeto que havia feito, não que os momentos que havia passado haviam se tornado um vácuo em sua mente, mas ele havia se concentrado de tal modo em seus pensamentos que não sabia como havia chegado ali em segurança, pareceu que estava em uma espécie de "piloto-automático" enquanto sua mente viajava por pensamentos e deduções sem sentido.
Assim que subiu os pequenos degraus da entrada e se dirigiu à recepção, foi recebido pelo olhar de uma velha senhora de óculos, cabelos grisalhos e curtos, um xale de tricô lhe cobrindo os ombros.
- O que você deseja?
Sua voz era fraca e rouca.
- Eu preciso de um livro, o deixei aqui ontem, com uma moça chamada Isabella. Ela está aqui?
- Não! Pelo menos não mais. Ela não trabalha mais aqui. Que livro procura?
- Quando dois mundos se tocam, Alfred Jefferson.
A senhora digitou alguma coisa no computador, esperou alguns instantes, e digitou novamente.
- Sinto muito mas não temos esse volume. Quer tentar outro?
- Desculpe senhora, mas terei de descordar. Eu estive aqui ontem e o li quase que a tarde inteira, quando fui embora o deixei aqui na recepção com a moça, Isabella, ela me disse que poderia voltar aqui hoje e continuar minha leitura.
- Deve ter sido outro volume, - ela olhou alguma coisa na tela luminosa à sua frente. - apesar de não termos nada desse autor em nosso acervo.
- A senhora digitou o nome dele certo?
- Eu sei escrever moço, não fale assim. Me desculpe. Não tem como um livro sumir assim de nosso acervo. Esse volume não existe, pelo menos não aqui. Tem mesmo certeza que não era outro volume? Temos aqui um O tocar em um novo mundo, um Mundos opostos e Dois toques. Não era um desses?
- Eu sei o que eu li senhora. Eu tinha o livro na mão ontem, era velho, páginas já amareladas...
- Desculpe, não posso fazer mais nada por você!
A decepção que o tomou naquele momento era grande, havia pensado no livro a manhã inteira e ansiava em poder concluir sua leitura, poder decifrar o que as marcas pretas no papel queriam lhe dizer, queria saber quem ele era.
Era estranho pensar assim, depois da experiência que teve enquanto estava indo para a biblioteca, ele havia percebido que era diferente, sim talvez todas as pessoas pudessem sentir o que ele sentia, talvez qualquer um que tivesse o colar conseguisse, mas ninguém mais tinha, o que fazia dele único.
Pensava no motivo pelo qual estava com o colar, quem o havia deixado em seu quarto naquela noite ou o que ele deveria fazer agora, podia ter sido aleatória sua escolha, alguém andando já sem esperanças na rua quando se depara com uma casa qualquer e joga o colar para dentro dela, mas também ele podia ter sido escolhido de algum modo, estaria pré determinado a possuí-lo, estaria destinado a algo maior, algo que ele ainda não compreendia ou conhecia, e que agora, sem o livro, a única coisa que estava lhe dando as respostas havia sumido, assim como sua esperança em descobrir alguma coisa.
Ali parado no balcão correu os olhos pelo espaço, ainda não conseguia compreender o que havia acontecido. Além dele ainda haviam duas outras pessoas na biblioteca, uma moça de cabelos marrons procurando algum livro específico nas prateleiras e um homem lendo o jornal em uma das mesas redondas. A moça Lash via, uma jovem muito bonita, mas o homem estava oculto atrás do jornal.
Ele se virou novamente para a senhora grisalha no balcão.
- Você tem o número de Isabella? A moça que trabalhava aqui. Ela deve saber onde está o livro que eu procuro, ela mesma o guardou ontem!
- Desculpe, mas não tenho nenhum tipo de acesso a informações de funcionários.
A irritação crescia dentro dele. Algo estava errado, ele viu o livro no dia anterior, leu o livro, tocou nele, ele não podia ter sumido. Talvez se ele pudesse falar com alguém que pudesse lhe ajudar, alguém que pudesse lhe responder onde o livro estava. Teve uma ideia.
Foi até um dos computadores que haviam em uma das paredes e iniciou uma pesquisa por Alfred Jefferson, talvez ele ainda estivesse vivo, talvez morasse perto, talvez concordasse em conversar com ele.
Sentia alguém o observando.
Olhou para trás, mas não viu nada, apenas a velha, a moça e o homem. Olhou novamente para o computador e sentou mais para frente na cadeira, tentando bloquear a visão de qualquer que tentasse ver o que ele estava vendo.
Rapidamente achou um artigo em um site na busca, "Professor ganha condecoração por estudos universitários", era ele, Professor Jefferson. Não tinha muita informação sobre o professor, mas tinha o endereço da universidade, que ficava a umas cinco cidades de distância, nunca conseguiria ir visitá-lo.
Pensou então em tentar enviar um e-mail e pedir que ele viesse encontrá-lo, era uma aposta precipitada e muito incerta, mas era a única coisa que podia fazer.

"Professor Jefferson, li parte de seu livro, muito interessante, achei ele em uma biblioteca, mas ele sumiu e preciso de respostas. Acredito que eu esteja de algum modo em contato com as energias que o senhor descreve em sua obra. Eu não sei como nem qual o motivo. Tenho também um estranho colar, é como o símbolo na capa, mas não consegui ler nada sobre ele. Aguardo ansiosamente resposta. Lashton Robert."

Assim que enviou o e-mail virou bruscamente para trás, ele sentia alguém o olhando, sentia alguém querendo algo com ele, era como estar em contato com um dos grandes corpos, mas era mais fraco e quase imperceptível. Quando se virou viu o homem em pé na recepção, com o corpo voltado para a saída e a cabeça ao seu computador.
Quando percebeu que havia sido pego, o homem saiu da biblioteca rapidamente, colocando um chapéu na cabeça e tentando ao máximo cobrir o rosto. Lash se levantou e seguiu o homem, era mais um homem de terno preto, e ele queria saber porque o estavam vigiando.
O homem saiu da biblioteca e seguiu pela calçada em linha reta por algum tempo, depois virando à direita em um cruzamento. Lash o seguia de longe, tentando não ser notado e não perder o homem de vista, o olhar fixado nele enquanto se movia habilmente entre os pedestres na rua, o corpo inteiro trabalhando com sua mente para tornar sua tarefa realidade.
Quando Lash chegou ao cruzamento olhou pela rua e não viu o homem, a rua não tinha mais nenhuma bifurcação com outras por um bom pedaço, por isso ele teria de estar em algum lugar ali por perto.
Olhou em volta e viu uma pequena entrada, para um beco talvez, era uma rua não muito movimentada, o que dava total descrição à pessoas com más intenções. Ele correu até a entrada do beco e se encostou de costas na parede de um dos prédios, tentando enxergar para dentro da pequena ruela.
Conseguia ver uma escada de segurança de metal pendendo de um dos prédios, latas de lixo acumuladas em um dos lados e sacos de lixo do outro, ao fundo via uma cerca alta de metal, e ao meio o homem de terno e chapéu parado.
Lash podia o sentir falando alguma coisa, se concentrando, seu corpo começou a formigar, o homem estava em contato com as energias. Ele olhou o homem de cima a baixo, tentando notar algo de diferente, e seu coração pulou quando viu em uma de suas mãos, pendendo ao lado de sua perna, um colar prateado igual ao seu. Sentiu que ele iria virar para trás e se escondeu rapidamente, um clarão tomou o beco e quando olhou novamente só viu o lixo, a escada e a cerca, nada mais.

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