Segunda Parte - Capítulo 2

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Capítulo 2
Ali naquela sacada Kurt não conseguia tornar todos aqueles acontecimentos plausíveis, ele entendia o que havia acontecido, de uma hora para outra havia se tornado comandante do exército da Quarta, lutou em algumas batalhas contra o exército da Nona e agora lutava para libertar os pequenos vilarejos da Quarta que haviam sido tomados.
Como ele, que sempre fora um bom aluno na escola e nos treinos, nunca se metera em confusão, detestava injustiças e sonhava com equilíbrio entre as tribos, se tornara um libertador da morte e da destruição?
Ali, observando as terras do pequeno vilarejo recém libertado, lembrava do dia em que havia se alistado nas tropas da Quarta, na verdade ele não tinha vontade de servir, nunca fora agressivo, mas sempre fora corpulento, talvez por trabalhar como lenhador, o que lhe dera os músculos, na verdade só havia se inscrito por causa das cotas.
Como ele morava sozinho em uma pequena casa com sua avó, ele quem provia os mantimentos da casa, mas como tudo ficava cada vez mais caro por causa dos impostos que as tribos tomadas cobravam pela troca de alimentos, ele viu como última alternativa entrar para o exército e deixar que sua amada avó se sustesse com as cotas distribuídas pelo exército.
Lembrava da longa fila que enfrentara para preencher os papéis necessários, dezenas de jovens fortes, todos loucos por lutar e enfrentar os vastos exércitos da Nona, e agora, depois da notícia da tomada da oitava e o surgimento dos transmutados, os exércitos de resistência aumentavam cada vez mais.
Depois de preencher os papéis todos haviam sido levados a um grande barracão de pano, onde receberam roupas uniformizadas, calças longas e apertadas, camiseta branca de braços longos, colete de couro com fechos de barbante e gola alta, e botas. Todos se vestiram e se apresentaram em um pátio ao lado do barracão, onde apenas uma pequena e quadrada elevação de madeira repousava.
Fora a primeira vez que vira o General Connor, os cabelos brancos curtos, a barba branca rala, assim como os cabelos, tatuagens nos braços com o símbolo da tribo a que servia e a longa cicatriz no maxilar quadrado, inúmeras histórias geravam em torno daquela cicatriz, e Kurt ouvira cada uma delas nas noites no exército, mas nenhuma era realmente comprovada.
O General fez um longo discurso, provavelmente decorado e que fazia a todas as novas tropas, falando sobre a devastação causada pela Nona, os direitos das tribos em Gaila, o equilíbrio das energias e toda aquela ladainha motivacional sobre enfrentá-los, derrotá-los e restaurar o equilíbrio.
Depois daquele teatro todos foram levados até dezessete carruagens, para trem até as terras do exército e aos campos de treinamentos. Não que o exército desconsiderasse o que eles aprenderam nos treinamentos de dominação na escola, mas agora precisavam aprender dominação para luta e não apenas para o dia a dia.
Em cada carruagem, seis jovens se amontoavam, sentados trio à frente de trio, e o cocheiro guiando. O exército recrutava novos jovens uma vez por ano, e por isso as carruagens atravessando os vilarejos e indo para os campos de treinamento eram vistas com orgulho e admiração por todos os aldeões, por isso pelas pequenas janelas com bordas de madeira Kurt conseguia ver inúmeras pessoas acenando e sorrindo para as carruagens, podia ver a esperança nos olhos delas, a qual depositavam naqueles fortes jovens do exército.
A viagem durou dois dias, sempre andando nas terras da Quarta, uma vez ou outra até passavam perto de alguma fronteira, todas sempre bem vigiadas, mas nunca atravessavam, à noite todos paravam com a carruagem em círculo e acampavam no centro, fazendo uma pequena fogueira e colocando todas as barracas voltadas à ela.
Ali na roda, todos os assuntos possíveis eram alvo das conversas dos futuros soldados da Quarta, a viagem, as moças acenando no caminho, as inúmeras histórias que imaginavam sobre como deveria ser lutar com um exército da Nona, e todos se vendo como heróis aniquilando Àquele que se esconde nas sombras.
Mas sem sombra de dúvida, o que prevalecia nas conversas, tirando piadinhas, eram histórias das vidas de cada um dos jovens. Alguns estavam ali apenas pela emoção, que jovem em plena forma física e no vigor da idade não gostaria de lutar em uma batalha pela liberdade de seu povo? Mas muitos tinham muito mais do que vontade.
Um jovem que buscava pelo pai, um soldado que fora visto pela última vez em um campo de batalha, outro buscando meios para curar a irmã de alguma doença, alguns na situação de Kurt, sem poder sustentar a família viram as cotas como última esperança.
Certamente o rei não sabia disso, Kurt tinha quase certeza, o que atraia a maioria dos soldados para a proteção do reino não era o desejo de liberdade, e sim dificuldades e problemas do dia a dia, coisas que certamente poderiam ser resolvidas nas próprias terras da Quarta.
Mas querendo ou não o motivo de tudo aquilo era o mesmo, a guerra, a maldita guerra iniciada pela Nona há décadas atrás, mas que tinha seu reflexo exposto em toda a vasta Gaila desde seu início, os impostos, as contenções de suprimentos - porque sempre fora assim em Gaila, cada tribo tinha sua especialidade na produção de mantimentos, enquanto umas produziam mais animais, outras produziam mais vegetais e frutas, e assim uma troca justa ocorria entre todas elas, o que acabou com o início da guerra, Aquele que se esconde nas sombras, assim que tomava alguma tribo, tinha como primeira ordem a suspensão das trocas - as mortes e a devastação.
Todos sabiam disso, e um dos reflexos tanto positivo como negativo da guerra que se via naquele momento, ali na fogueira, eram aqueles muitos rapazes, alguns praticamente obrigados à estarem ali, sem ter outra opção de sobrevivência, vendendo o vigor e a força por uma causa nobre, o que não tornava aquele sacrifício de todo inválido.
Depois de uma noite tranquila de descanso, junto com o sair do sol, as carruagens também saíram, todas no mesmo ritmo e marcadas por um compasso único do som dos cascos dos cavalos batendo na estrada de terra, Kurt se lembrava de seus colegas de carruagem dormindo sentados enquanto viajavam.
As conversas eram do que ele mais se lembrava da viagem, os outros cantos das lembranças daquele ano no exército eram completamente tomados por treinamentos, simulações e vivências, corriqueiras, mas muito significativas para ele.
Lembrava-se da primeira instrução de combate na área de treinamento um, perto dos alojamentos onde todos dormiam, o campo era retangular, de um lado todos os jovens soldados e do outro uma pequena bandeira amarela pendurada em uma corda a alguns metros de altura, tudo o que tinham de fazer era chegar ao outro lado e pegar a bandeira.
Dos lados do campo oito homens esperavam em pé, em posição de sentido, Kurt não sabia o que eles estavam esperando até seu primeiro colega tentar atravessar o campo ao sinal do general, um daqueles homens girou sobre o próprio pé, esticou um dos braços e lançou um forte raio que cortou o ar, acertou o jovem e o jogou na extremidade do campo novamente.
- O segredo, rapazes, é conseguir ter olhos em toda a parte, saber de onde o golpe está vindo, prever o movimento. Em batalha o que mais conta não é a força que vocês atacam e sim a capacidade de se esquivar do ataque do inimigo.
Todos os garotos se motivaram com a fala de Connor, que esperava do lado sob a bandeira com um ar de superioridade, sem negar sua patente, mas nenhum deles conseguiu passar da metade do campo.
- Só vamos sair daqui quando essa bandeira for pega por alguém! E eu não me importo de esperar horas para isso.
Os garotos tentavam um atrás do outro, as vezes indo dois ou três ao mesmo tempo, mas sempre acabavam sendo acertados e lançado para fora do campo, alguns iam correndo, outros caminhando em alerta, alguns até mesmo agachados, mas nada parecia funcionar contra o grupo veloz de soldados.
Todos os jovens estavam cansados, machucados, os raios lançados pelos soldados não eram fortes, mas mesmo assim causavam machucados e manchas roxas na pele, o recruta que chegara mais longe havia passado de quatro soldados, mas não mais do que isso.
Até o próprio Kurt tentou algumas vezes, respirava fundo e corria, pulava e girava no ar se esquivando dos golpes, ricocheteava raios com outros raios, ia de um lado ao outro do campo, mas no fim sempre era acertado por um golpe que vinha sem ele notar.
Todos haviam passado o dia ali, estavam cansados e ninguém mais aguentava ser acertado, tentar e fracassar, mas o general jamais voltava com sua palavra, ele iria mesmo ficar ali com todos até alguém conseguir pegar aquela maldita bandeira.
Foi quando Kurt teve uma ideia, procurou no grupo de recrutas seus colegas de carruagem, pois eram com quem ele mais teve contato até o momento, e os reuniu em uma roda, iriam acabar com aquele treinamento naquele momento, não tanto por pegar a bandeira, mas para poderem voltar para o alojamento, comer alguma coisa e descansar.
E, assim como estavam conversando, foram para o campo, em círculo, porém dessa vez com as costas voltadas ao centro, todos se movendo juntos, como um único corpo, capazes de ver e se esquivar de todos os ataques dos soldados e avançar lentamente, em harmonia de passos impressionante.
Quando conseguiram chegar à outra extremidade do campo Kurt se lançou do meio do círculo ao ar e pousou com uma cambalhota, parando agachado em frente ao general com a bandeira amarela nas mãos, ele se lembrava daquele momento, a satisfação em ter concluído o exercício e o leve sorriso de canto de Connor.
Ele entregou a bandeira ao general e todos voltaram para o outro lado do campo, Connor olhou firme para o pedaço de pano amarelo e com um sinal com a outra mão dispensou os soldados, que se viraram todos juntos e saíram pelo fundo.
O general caminhou em direção ao grupo de recrutas.
- Quando estamos em combate temos que ter em mente o motivo de estarmos lá, proteger nossa tribo, nossos amigos, nossa família e acima de tudo a nós mesmos, soldados mortos não me servem. Em batalha o trabalho em grupo é essencial. O inimigo consegue prever os movimentos de uma pessoa sozinha, saber o que ela fará movida pela raiva, pelo medo ou pela ansiedade, mas não consegue prever os movimentos de um grupo, várias mentes trabalhando em conjunto. Isso que eu quero, e isso que pode mantê-los vivos.
Ele entregou a bandeira a Kurt, abriu caminho pelos recrutas e se dirigiu à sua cabana, dando ordens para todos voltarem ao alojamento e descansarem para o treinamento do outro dia, que seria no mesmo lugar.
Enquanto iam de volta para o grande prédio onde todos dormiam Kurt podia perceber a agitação de alguns recrutas, alguns felizes por poderem descansar, outros impressionados com sua ideia, mas um pequeno grupo o chamou mais a atenção, enquanto muitos vinham o cumprimentar pela esperteza, alguns se mantinham afastados, parecendo ter raiva, inveja.
Realmente ele podia ter certeza de que pessoas ruins existiam em todos os lugares, independentemente da tribo a que pertencessem.

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