Capítulo 1
Eu não me lembro do dia em que eu nasci, até porque ninguém se lembra, talvez por sermos muito pequenos ou por não termos o cérebro totalmente desenvolvido ainda, mas eu sei que não tenho nenhuma lembrança daqueles dias escuros, digo dias escuros pois minha mãe e minha avó contam histórias pra mim daquele dia, ou pelo menos contavam, o dia em que eu nasci.
Minha avó me contou que era noite e que ela, meu avô e minha mãe estavam vindo de uma visita de comércio da segunda tribo, minha mãe trabalhava como contadora de trocas na época e por isso sempre ia em viagens pelas tribos para trocar mercadorias, desde grandes produtores de cereais até nossos amigos na aldeia.
Era noite e estava chovendo, uma chuva forte, os cavalos andavam com dificuldade porque suas patas enterravam na lama, na carroça iam minha avó, minha mãe, grávida de mim, e um senhor, acho que produzia lã, ou grãos, não me lembro direito.
Enfim, Eles andaram através da fronteira e estavam atravessando o grande campo quando um dos cavalos caiu, deve ter tropeçado ou até mesmo desmaiado, sei que não andamos mais depois dele ter caído, ficamos ali, parados no meio da estrada no auge da noite e da chuva, mal se via a lua e as estrelas e a única luz vinha dos lampiões dentro e fora da carroça, mas que com o vento ficavam apagando toda hora.
Minha mãe contou que meu avô entrou na carroça e disse que havia amarrado os cavalos em uma árvore ali perto e que não poderíamos continuar até que a chuva parasse, então ele e o mercador puxaram a carroça e a colocaram embaixo das árvores também, iríamos ficar ali até que a chuva ficasse mais fraca.
Mas as horas passaram e ela não dava nenhuma trégua, ficamos ali nas árvores por horas, o pano da carroça quase arrebentando com a força dos pingos de chuva. Como o mercador havia ido trocar o que ele produzia por frutas, porque as frutas produzidas pela segunda tribo eram, e ainda são, as melhores de todas as tribos, não passamos fome, mas meu avô fez uma dívida grande com ele.
Sei que ficamos ali o dia inteiro, comendo frutas e esperando, minha mãe disse que ficou acariciando sua barriga para me acalmar o dia todo, acariciando a barriga e comendo frutas, acho que é por isso que eu gosto tanto de frutas da segunda tribo hoje.
Quando estava escurecendo meu avô decidiu não esperar mais, minha mãe estava sentindo dores e eu poderia vir a esse mundo a qualquer momento, então ele decidiu ir com um dos cavalos até o vilarejo buscar uma carruagem grande e voltar para nos pegar antes do amanhecer, e partiu, ele em um cavalo e o mercador no outro.
Minha avó me confessou que havia ficado com medo, ela e a mamãe ali sozinhas naquela carroça, a chuva forte mal sendo detida pela copa das árvores e chegando forte ainda nos panos que as protegiam. Admito que até eu ficaria com medo se eu estivesse lá, se bem que eu estava, digo que até eu ficaria com medo se estivesse no lugar de uma delas.
Minha mãe não disse o que estava sentindo, disse apenas que tentava me segurar na barriga dela até meu avô voltar, mas eu posso garantir que ela também estava com medo, com muito medo, mas ela sempre foi muito durona, como eu, por isso não deixava transparecer nada.
Mas no fim ela não conseguiu segurar, eu não consegui esperar até o outro dia de manhã e nasci naquela noite mesmo, ali na carroça pelos braços de minha avó. Ela contou que o parto não foi difícil, disse que havia sido tudo tão natural e maravilhoso que as duas apenas riam e se olhavam.
Esqueceram a chuva, o frio e o medo, ficaram extasiadas com o que estava acontecendo, uma nova vida vindo ao mundo, o resultado do amor da minha mãe e do meu pai, que havia morrido nas primeiras batalhas, estava ali com elas. Era eu!
Mamãe disse que eu mamei o resto da noite inteira e que quase nem chorei.
E nós três esperamos pelo resto da noite, e pelo outro dia inteiro, mas os dois não voltavam, ficamos ali esperando por dois dias, vimos a chuva parar, o sol brilhar no céu e o campo secar, mas eles não voltaram.
No terceiro dia, com muita relutância, as duas aceitaram que talvez alguma coisa havia acontecido e que eles não voltariam mais, então resolveram partir, continuar a viagem e chegar até o vilarejo, encontrá-los e seguir a vida.
A carroça era pesada e ainda tinha muitas frutas, mas elas não tiveram escolha, primeiro minha avó puxou a carroça, minha mãe ainda meio fraca foi em cima dela comigo, e minha avó aguentou firme, mesmo com a idade avançada ela não pigarreou em puxar eu e minha mãe nenhuma vez.
A estrada estava cheia de buracos e a carroça atolava uma vez ou outra em alguma poça d'água que ainda persistia ao tempo quente, mas não paramos nenhuma vez. Admiro minha avó por causa disso, ela puxou nós duas por muito tempo, em um longo caminho, sob o sol quente e não reclamou nenhuma vez, nem deixou minha mãe ajudar, apesar dela insistir várias vezes para que vovó descansasse um pouco.
Sei que paramos para descansar quando o sol já baixava no céu, mamãe e vovó comeram frutas e descansaram na beira da estrada e viram o sol se por e o dia se transformar em noite, a luz ir embora e tudo ser tomado pela escuridão. Dormimos.
Foi depois da metade do outro dia que ao longe elas avistaram uma carruagem, eu imagino a alegria que sentiram, a felicidade e o alívio em vê-la chegando, Eram eles, pensaram. Mas não era. A carruagem meio vermelha meio marrom chegou até elas, parou e revelou um viajante desconhecido, não o vovô e o comerciante, mas um simples viajante desconhecido.
A princípio elas ficaram desanimadas, aceitaram um pouco de água que ele ofereceu, conversaram um pouco sobre os efeitos da chuva na estrada e contaram o que as havia acontecido, Mas agora tenho que ir até a segunda tribo pegar algumas frutas, ele disse, e então mamãe propôs uma troca.
Ele não tinha vindo do vilarejo para onde elas estavam indo, mas concordou em levá-las até ele pelas frutas que elas traziam, o que seria um negócio extremamente vantajoso para ele, afinal não precisaria ir até a segunda tribo e não perderia a tapeçaria que trazia para trocar, só teria que fazer um caminho diferente antes de ir para casa.
Mamãe e vovó colocaram todas as frutas da carroça na carruagem do homem com a ajuda do seu criado, o que vinha guiando a carruagem, e depois se acomodaram na cabine junto com ele, abandonando a carroça velha que vinham puxando ali mesmo.
O criado deu a volta com os cavalos e voltou pela estrada, agora indo em direção a um vilarejo da quarta tribo, o homem, descobriu minha mãe, vinha da Terceira, que ficava do outro lado das planícies de água, e estava indo buscar algumas frutas para a família, ele também havia enfrentado a tempestade, mas sua sorte havia sido melhor, encontrara uma caverna para se refugiar e pudera dormir no conforto de sua carruagem.
Vovó não lembra muito da carruagem, pois como estava cansada dormiu não muito tempo depois de recomeçar a viagem, mas mamãe me conta como ela era em detalhes, a estofaria vermelho forte, as janelinhas circundadas por fios dourados e o teto copular.
Certamente o homem era de alguma família de posses, ele disse que trabalhavam com tapeçaria, e que às vezes forneciam tapetes enormes para o rei da quarta tribo, o que lhes rendia uma boa posição financeira, a primeira vez que eu ouvi essa história, quando ainda era pequena, até me empolguei e tentei fazer alguns bordados e tapetes para levar ao palácio, mas fui um desastre.
Pelo caminho minha mãe disse que foi conversando com o homem, conversaram sobre a guerra, sobre a posição das tribos, ela sempre fica desconfortável em falar sobre a guerra, mas disse que não queria ser desagradável com o homem que as estava ajudando então deu continuidade ao seu assunto.
Continuaram a viagem e não demorou muito para que passassem pela bifurcação na estrada, um lado ia para a terra de Aimã, o dono da carruagem, e o outro para as terras da quarta tribo, para onde estávamos indo.
Eu queria poder lembrar daquela viagem, nunca sai das terras da tribo e tenho muita vontade de conhecer outros lugares, viajar pelas planícies e mares, vendo o que poucos viram, sentindo o que poucos sentiram, mas minha mãe nunca me deixou sair do vilarejo, o máximo que eu fui foi até os portões dos muros do castelo uma vez, mas nada além disso.
A parte que eu mais gosto de escutar da história é a parte dos mares, pois a estrada que minha mãe vinha passava pela beirada de um penhasco de pedras, onde os mares encontravam as terras. Eu imagino como deve ser olhar para o horizonte e não ver nada além de água, um chão imenso e azul que se move, que pode nos envolver com sua beleza e nos matar se formos fracos.
A viagem sempre me pareceu a parte mais atrativa da história, as cavernas grandes onde gotas de pedra pendiam congeladas do teto, as densas florestas onde as árvores pareciam se entrelaçar nas alturas e formar uma única planta gigante. Como eu queria me lembrar.
Minha mãe também gosta de falar sobre a viagem, foi a última que fizera, depois que eu nasci ela largou a tarefa de contadora e passou a ser tecelã em casa para tomar conta de mim. Às vezes eu fico meio chateada, porque se não fosse por mim ela ainda continuaria viajando pelas tribos, mesmo com a guerra, e veria coisas novas todos os dias, como eu quero fazer.
Mas agora é tarde demais, eu sei que ela está feliz comigo, ela diz isso o tempo todo pra mim, mas eu sempre vejo em seus olhos a tristeza profunda que ela sente, ela nunca falou o que era, mas deve ser algo que mexeu muito com seus sentimentos.
Mas a beleza da viagem terminou quando a carruagem passou por um pasto onde dois cavalos comiam a grama verde, despreocupados, com as celas vazias, minha avó ainda dormia, mas minha mãe tinha certeza de que eram os cavalos que meu avô e o mercador haviam levado da carroça dias atrás.
Minha mãe acordou minha avó, parecendo querer alguém para dividir a surpresa e a possível dor que se seguiria, porque esse era o maior medo dela, perder mais uma pessoa em sua vida, mais alguém que amava, ela nunca me contou como papai morreu, e eu nunca me atrevi a perguntar muito, Ele se foi há muito tempo, ela sempre diz.
Vovó pediu para Aimã parar a carruagem, ele obedeceu calado, percebeu que algo estava errado mesmo sem as duas dizerem nenhuma palavra, depois saiu à rua junto com elas e foi na direção dos cavalos, subindo uma pequena colina verde.
Não havia mais ninguém ali, nem o mercador, nem meu avô, nem ladrões ou fiscais de carga, apenas os dois cavalos sozinhos pastando. Minha avó caiu de joelhos no chão, chorando, minha mãe a abraçou com um dos braços, enquanto me segurava com o outro, e tentou a consolar.
Talvez eles estivessem ali perto em alguma árvore pegando frutas ou apenas buscando água em algum riacho, as possibilidades eram muitas para pensarem logo no fim dos dois, mas minha avó sempre via o pior primeiro, não gostava de se encher de esperança, pois sabia que a esperança só trazia decepção, seria melhor para ela aceitar o que estava acontecendo agora do que se agarrar a uma esperança infundada e sofrer ainda mais depois.
As duas ficaram ali algum tempo, Aimã não sabia o que fazer e apenas observava, calado, demonstrando respeito pelo sentimento delas, as mãos no bolso, provavelmente lembrando das muitas vidas que se foram de sua tribo por causa da guerra. Maldita guerra.
Mas as lamentações não demoraram muito, o cocheiro da carruagem veio até elas, na verdade nós, de cabeça baixa, não querendo ser inconveniente ou atrapalhar o que quer que estivesse acontecendo, mas ele precisava avisar o que estava acontecendo.
Naquela hora provavelmente eu também devo ter sentido o mesmo que eles, uma forte perturbação no espaço, correntes de energia percorrendo o corpo inteiro, o próprio espaço se agitando, e as luzes.
Os cavalos foram esquecidos, a dor foi deixada de lado, todos estavam olhando para o outro lado naquele momento, o horizonte na direção da tribo de Aimã. Um ataque havia começado, certamente liderado pelos capitães da nona tribo, e dali de onde estávamos se podia ver as luzes dos ataques, se podia sentir as energias se chocando, a morte recaindo sobre os mais fracos.
Acho que não poderei voltar para casa tão cedo, foi tudo o que Aimã conseguiu dizer.
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A NONA TRIBO
FantasyPrimeiro livro da série -A Nona Tribo A Nona Tribo - O Despertar E se o mundo à sua volta e você fossem conectados e se misturassem de uma maneira que um novo e impressionante leque de possibilidades se abrisse à sua frente? Se sua concepção de exis...