Tenho uma visão

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Sam

A casa dela era pintada de preto. As escadas despedaçadas, causavam insegurança para poder subir. Agatha parecia ficar mais tranquila ali. Eu não sabia porque, pensava que eu tinha que segui-la para lá.
Ela me olhou, me chamando com o olhar. Minhas pernas se mexeram, subindo as escadas que resmungavam a cada passo meu.
Eu estava com o olhar vidrado. Tudo na casa parecia sombrio e solitário. Não via ninguém além de nós. A casa era escondida. Longe de tudo.
Agatha empurrou a porta de madeira com o pé. Ela rangeu, até terminar de ser aberta.
Ela entrou, me lançando um olhar desconfiado. Depois que ela sumiu na escuridão da casa, criei coragem para conseguir entrar.
O que eu senti foi um forte cheiro de pó, que me causava náuseas. Lá era frio, como se nevasse. Quando finalmente entrei, o ar gelado me embalou. Eu não via Agatha.
Apenas percebi que a porta se fechou lentamente atrás de mim. Como se alguém a empurrasse a porta suavemente.
Eu não fiquei com medo.
O lugar era escuridão. Eu ouvia barulhos de passos no cômodo seguinte, deduzindo que seriam de Agatha.
Alguns minutos depois, Agatha voltou, segurando uma vela, já acessa. Ela me olhou, examinando minha expressão.
- Você mora aqui...?
- Haham.
- Nesse escuro?
- Aham.
- Onde estão seus pais?
- Na terra. - Ela respondeu, desviando o olhar. Engoli em seco, não querendo saber o sentido daquela resposta. Ela suspirou, e agachou, grudando a vela no chão. Me afastei um pouco. Ela se endireitou.
- Não costumo ter luz aqui. Mas creio que você não está acostumada, então... Acho melhor deixar um pouco.
- Onde você dorme? - Perguntei sem pensar. Ela se voltou para a parede, e respondeu:
- Aqui mesmo. - Ela me encarou, soturna. Olhei ao redor. Com a meia luz da vela, não conseguia ver muita coisa. Mas vi que ali não tinha cama nenhuma.
- Dorme no chão? - Perguntei. Ela assentiu, lentamente.
- Me sinto mais perto dos meus pais. -Agatha passou pela vela, que tremeluziu. Ela sentou no chão, e olhou para mim.
- E então? Você quer ajuda. Irei te ajudar. - Ela disse, com a porta expressão contrariada.
****

Lolla

Ele era meu melhor amigo. E mesmo assim...
E ainda é. Porque eu estou falando que ele era?
Tem muita coisa errada. E eu vou descobrir. Ele está fora de si. Isso é fato. Mas eu não vou deixar ele continuar assim.
Estava distraída, andando sem rumo pela rua, quando uma agradável criatura passou correndo por mim. E me e empurrando para o lado.
Franzi a testa, e olhei para o menino, que reduzia a velocidade, e se voltava para trás.
- Hey, desculp... - O garoto disse. Mas parou a frase, quando me olhou de cima a baixo. Eu examinei seu rosto, atônita, e meus me voltei para os eletrizantes olhos azuis que ele tinha. Eu já tinha visto aquele garoto em algum lugar.
Ele se aproximou mais, me encarando.
- Olá... Hã, desculpe ter passado aqui correndo. Eu estava com pressa. - Ele disse, suavemente. Soltei um sorriso,
- Tudo bem. Meu nome é Lolla. Prazer. - Eu disse. Ele sorriu, e aspirou o ar, parecendo cansado de correr.
- Prazer. Meu nome é Douglas. Pode me chamar de Doug. - Ele disse, indo para trás, mas ainda olhando para mim.
- Tenho que ir... Tomara que nos encontremos por ai. - Ele balbuciou, e deu um tchau com a mão, se virando totalmente e recomeçando a correr.
Eu já tinha visto ele em algum lugar...
Pior. Eu tinha a sensação de conhece-lo a muito tempo.
****

Sam

Sentei no chão, ao lado da vela, e encarei Agatha. Ela olhou para a chama. Sua expressão parecia mais assustadora do que de costume, com o fogo refletindo o rosto.
Ela voltou o olhar negro para mim.
- Você está sentada em cima dos corpos dos meus pais, sabia? - Ela sussurrou. Eu ri, achando graça.
- Não é brincadeira. Você não sabe o que aconteceu aqui. Não sabe o que acontece comigo. Não sabe nem o que está acontecendo com si mesma. - Ela disse, fechando os olhos, e os reabrindo lentamente.
Franzi a testa, olhando para o chão. Com horror, percebi que ele era de terra. Me voltei para Agatha, com os olhos arregalados, e disse:
- Você não pode estar falando sério. - Ela sorriu, sem emoção, e disse:
- Tudo que eu falo é sério. Você já deve ter percebido. - Umedeci os lábios, e esfreguei as mãos, nervosa.
- ...Tá. Seja o que for, pode me me ajudar? - Perguntei. Ela olhou para a chama, estendendo o dedo para ela.
- Irei te ajudar. Mas saiba que só irei te ajudar porque as trevas pedem. - Ela voltou o olhar negro para mim, que diante do fogo, pareciam arder.
- As trevas?
- Sim.
- Trevas querem me ajudar?
- Hm... Não exatamente. - Ela sorriu, com minha confusão. Ergui uma sobrancelha.
Ela estendeu a mão quente para mim, depois de tirar de cima da chama. Ergueu seus olhos, e disse:
- Imagine algo antigo.
- ...Oque?
- Anda. Qualquer coisa. - Ela pediu. Nervosa, eu pensei na primeira coisa que veio na minha cabeça: Um piano, antigo, que ficava no sótão de nossa casa, do tempo que eu ainda tinha minha família. Do tempo que eu ainda era feliz.
Ela afirmou com a cabeça, fechando os olhos.
- Nada mal. - Ouvi Agatha sussurrar. Como ela sabia que eu havia imaginado um piano?
- Feche os olhos, e pense nesse piano. - Ela balbuciou.
Fechei meu olhos. Lembro quando meu pai me mostrou ele. Era preto, velho. Mas acabou ficando lindo e brilhante quando o limpamos. Ninguém ali sabia toca-lo. Eu até hoje não sabia porque existia aquele piano ali.
Lembro que ele continha um pequeno banquinho. Propício para uma criança sentar. Na época, eu pensava que era para mim. Mas com o passar do tempo, cresci, e nunca aprendi a tocar.
Foi assim, pensando, que eu adormeci. Eu não lembro direito como. Apenas senti minhas costas encostando na parede, e com isso, uma cena antiga se desenhando na minha mente.
Um garotinho, com expressivos olhos marrons claro, corria alegremente pelo jardim. Eu não sabia exatamente onde era aquilo, só conseguia ver o garoto. O resto da cena era embaçada. O menino ria, e corria, de um lado para o outro. Percebi que ele corria de um cachorro. Ele era branco, com alguns pontos pretos.
Eu ouvi uma voz feminina sussurrar no ar, enquanto a criança brincava:
"Está percebendo que seu passado é seu presente, Sam"?.
Procurei da onde vinha a voz. Mas não via nada, a não ser o menininho.
Ele parou de correr, e olhou para um lugar. Olhei junto. A silhueta de uma casa serpenteava na minha visão. Ele riu, e correu para a casa, com pulinhos alegres.
Eu o segui. Mesmo sem saber onde eu ia, a visão do menino clareava minha mente.
Onde ele passava, o caminho desembaçava. Mas logo que eu ia fazer o mesmo caminho, embaçava de novo.
Entrei na casa, atrás dele. Eu conseguia ouvir risos, louça batendo, como se fosse um almoço alegre. Conseguia ouvir. Mas não ver.
As vozes eram familiares. Tudo era familiar. Mas minha visão não reconhecia.
O garoto correu para uma mesa. Sentou em uma cadeira, e bateu as mãozinhas nela, olhando para o prato vazio que pairava sobre ela.
Uma pessoa chegou mais perto. Parecia sorrir, eu não sabia ao certo. O garotinho se alegrou, agitando os braços. Vi a pessoa servir sua comida, e ele começou a comer, ansiosamente.
"Vamos dar um passei alegre. Feliz." - Eu ouvi, um homem dizer, com voz distante. O menino sorriu ainda mais.
Sua alegria me dava angústia.
O tempo pareceu acelerar. As vozes passavam atropeladas, as pessoas se moviam rapidamente, as risadas eram curtas e rápidas.
Então voltou ao normal. Dessa vez, o menino estava com uma roupa de sair, e andava alegremente pela calçada em frente a casa, do lado do cachorro.
Um carro dourado parou do lado do garotinho. Ele olhou, e viu que alguém saia dele. Franziu a testa, parecendo com medo.
"Tudo bem! Não precisa ter medo"! - Uma voz distante e distorcida disse. O menino foi recuando para trás, até bater de leve em uma pessoa, que estava atrás dele. A pessoa pareceu encoraja-lo para o carro dourado.
Eu queria gritar para ele não ir. Um peso enorme no meu coração se formava naquela hora.
Mas o garotinho acabou abrindo um sorriso simpático, agora um pouco mais confiante.
Andou em direção ao carro, entrando nele. Quem quer que estivesse o chamando, fechou o menino no carro, e entrou de novo, fazendo uma referência para a pessoa que mandou o garotinho ir.
Deram partida no motor. Eu consegui ver o menininho virar para trás, colocar a mão no vidro da janela do carro, e dizer:
- Papai...? - A voz dele ecoou pela minha cabeça. Uma voz inocente, e tão leve...
O carro sumiu pela estrada.
Então minha visão ficou preta. Eu conseguia ouvir apenas risos. De homem, e de mulher. E um choro de criança.
De um menino.
Em uma fração de segundos, um grito de criança zumbiu nos meus ouvidos, e tudo silenciou.
Pouco depois, uma música suave e macabra começou a ser ouvida.
Um toque de piano.
Que a princípio, era baixo. Mas foi aumentando.
Então uma meia luz começou a iluminar o ambiente.
Eu vi, o mesmo garotinho. Mas dessa vez, ele vestia uma roupa preta. Uma sombra não deixava eu ver a expressão em seu rosto. Mas era visível que ele chorava.
Chorava enquanto tocava um piano. O mesmo piano que eu tinha imaginado antes de adormecer.
Eu só sabia uma coisa.
Aquele garotinho era o tal pianista.

Tem alguém aí? - Volume 1 Onde histórias criam vida. Descubra agora