A chuva havia parado. Só restava minha expressão atônita, os soluços de Agatha, a vela acessa fracamente, e a meia luz da fria manhã, que já se fazia visível.
Depois de tudo que eu ouvi, depois de tudo que eu senti enquanto ouvia, eu não podia mais reclamar de nada. A vida de Agatha era dez mil vezes mais pior que a minha. Não havia palavras para expressar a angústia que eu tinha, só de pisar naquela casa. Agatha disse que seus pais estavam ali. Enterrados naquele chão. E eu vi Emily, lá fora.
A cada vez que eu pensava, mais meu fígado dava voltas. E a cada vez que eu ouvia um soluço de Agatha, meu estômago ameaçava subir para a garganta.
O silêncio era constrangedor. Estávamos em uma mistura de tristeza, com sonolência. Afinal, não havíamos dormido, em nenhum momento. Tudo o que eu queria, era parar o tempo, voltar, para bem antes... Quando nada daquilo existia... Quando o mundo parecia ser bom para mim.
Se eu fosse capaz de voltar no tempo...
Se...
Agatha suspirou, e levantou.
- Já está de manhã. Passou rápido. Você deve estar morrendo de sono. - Ela balbuciou, passando as costas da mão na bochecha, com a intenção de secar as lágrimas.
- Hey... Como você vive aqui, Agatha? - Perguntei, com o estômago embrulhado. Ela contraiu os lábios, balançou um pouco uma perna, e respondeu:
- Eu passei minha vida aqui. Acabei acostumando.
- Mas... Mas morreu pessoas aqui. Você dorme no chão. Não tem comida. Energia. Como consegue?! - Insisti. Ela balançou a cabeça, dando de ombros.
- Eu me sustento com os lanches que aquela escola dá. Não preciso de energia. O fato de pessoas morrerem aqui, não me incomoda. Eu também morrerei um dia. Aqui. Nunca irei me afastar das almas desgraçadas que rondam essa casa. São minha família, apesar de tudo. Uma família, que em um tempo perdido e distante, foi feliz. - Ela terminou, dando um sorriso no canto do lábio.
Então aquela era a verdadeira Agatha. A garota durona e roqueira, mas que na verdade, escondia um coração de puro sofrimento, junto com tristeza e sensibilidade.
- Você quer conhecer o resto da casa? - Ela perguntou, apontando para o andar de cima, que eu já podia ver melhor, com a luz azulada entrando pelas janelas gastas e quebradas do lugar.
Eu não sabia o que dizer. Não queria parecer insensível, mas também não queria aumentar meu medo daquela casa.
Eu abri a boca para dizer não, mas minha cabeça afirmou, dizendo sim. Agatha sorriu, afastando o cabelo bagunçado do rosto.
- Venha, não precisa ter medo. - Ela me chamou com a mão, me fazendo mover minhas pernas.
Segui ela pela escada, que rangia a cada passo meu. Desenvolvi certo medo de escadas, desde que aconteceu aquilo com Alyce.
Agatha chegou ao topo dos degraus, e parou diante de uma pequena porta, empoeirada. Ela ficou olhando, como se criasse coragem para alguma coisa. Depois de alguns segundos, se voltou para mim.
- Faz tempo que não entrou aqui... Desde que Lee se matou pulando da sacada. - Seus olhos brilharam, com um misto de ansiedade e loucura. Sorri, compreensiva.
- Se não quiser entrar, não precisa. - Balbuciei. Ela balançou a cabeça, lentamente, com a boca arreganhada em um sorriso insano.
- Está tudo bem. Apenas estava relembrando o momento que Lee subiu essas escadas, me perseguindo com um machado. - Ela sussurou, me fazendo sentir um calafrio.
Agatha se virou lentamente, e abriu a porta empoeirada, que resmungou ao seu toque.
Um cheiro de mofo me embala. Agatha entra no quarto, relutante. Subo os restos das escadas, me de parando com uma porta escura, com teias de aranha nas bordas.
Agatha olha para o teto, e experimenta o dejuntor. A luz amarela acende, fazendo um barulho elétrico.
Ela se adentra mais no quarto, que sinto seu ar abafado, com meus passos se aproximando.
Fiquei em frente a porta, relutante em entrar. Poxa, uma criança de onze anos morreu ali...
- Quantos anos eu não entro aqui...- Ela sussura. Se vira para mim, e me chama com mão. Engoli em seco, tentando sorrir.
Entro no quarto. Era um aposento agradável. Pelo menos seria, para uma pessoa que não sabe o que aconteceu ali.
As paredes eram de um suave rosa, meio amarelado nas pontas. Uma cômoda branca estava encostada no canto do quarto. No meio, havia uma cama, com um edredom azul marinho. No alto, um travesseiro felpudo e branco, que carregava alguns vestígios de sujeira.
No outro lado, uma escrivaninha. A escrivaninha era de madeira preta, e por isso, parecia mais assustadora com as teias de aranha que as envolvia.
Agatha se dirigiu até lá, e parou em frente. Parecia indecisa.
Eu estava com um nó na garganta. A janela ali, estava fechada, tampada por uma cortina cor de creme.
- Eu escrevia poemas... Escrevi um, duas horas antes da minha irmã morrer. Não me lembro bem se eu o havia guardado... - Ouço ela titubear. Eu me sentia angustiada naquele lugar.
Agatha agacha, e leva a mão ao chão, embaixo da escrivaninha. Depois, se levanta com um papel sujo nas mãos, do qual ela assopra a poeira de cima. Parecia ler alguma coisa. Depois, suspirou, veio a minha direção, e entregou o papel para mim. Ergui uma sobrancelha, e li o que estava escrito:
"Vamos colher as flores que nascerem nos asfaltos
Venha comigo dançar nos cemitérios
Saborear o suco de sangue que servem nos batizados
Desafiar a vida além da morte
Sentir o cheiro de velas derretidas pelas ruas da cidade
Lavar a alma na água suja
Ouvir os gritos de pavor das pessoas condenadas
É uma pena como a vida é
Você quer que eu cante
Mas não posso cantar sem ferir alguém
Porém não se acanhe, mundo estéril,
Com os horrores que lhe digo
A vida parece mais rosa perto do que vivo
E mesmo sabendo
As lembranças macabras que estas paredes guardam
Espero poder continuar aqui
Sem poder sair para o jardim
Apenas para dançar alegremente entre os túmulos
Mesmo que minha paciência acabe
Beber o sangue de crianças parece mais fácil
E quando a vida provar ser mais cruel que a morte
Talvez você abra os olhos, e finalmente acorde..."
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Terminei de ler, e ergui os olhos para Agatha. Ela me encarou sem graça, e disse:
- Foi esse... "Poema" que escrevi. Bem, não gostei taaaanto. Já fiz melhores. - Ergui o lábio inferior, respondi:
- Está muito bonito, realmente. Você tem talento. - Ela sorriu, balançando a cabeça.
- Minha irmã morreu ai, onde você está. - Ouvi ela sussurrar - Desde então, ela fica rodeando a casa... E o cemitério. Bem, foi onde Lee a enterrou. - Engoli em seco, e deixei o papel em cima da cama.
- Er... Bem, vou indo. Preciso ir. Já amanheceu, Lolla deve estar preocupada. - Eu falei, sorrindo, sem graça.
Ela fechou o sorriso, e respondeu, alisando o cotovelo:
- Ok. Tudo bem, vai nessa. Eu não ajudei nada você. Acho que só incomodei. Me desculpe. - Neguei com a cabeça.
- Você me ajudou. Bastante.
- Eu queria te contar mais coisas. Mas não tenho permissão. - Agatha finalizou.
Assenti, e me virei, louca para sair de lá. Ouvi ela vir atrás de mim, e descer as escadas.
Já disse que eu tinha certo medo de escadas né?
Meu medo piorou.
Quando eu desci o quarto degrau, ouvi de relance, a risada de um adolescente, e logo depois, de uma criança.
Senti um arrepio na espinha, e vi que a escada emitiu um barulho de algo partindo. Logo depois, de madeira quebrando.
Em um piscar de olhos, ouvi um grito, e senti o apoio sumir dos meus pés, me fazendo cair. Gritei, assustada, tentando agarrar alguma coisa. Mas não tinha nada ao meu alcance.
A única coisa que senti, foi uma dor aguda nas costas, e logo depois algo pesado caindo em cima do meu braço, que pareceu romper um osso, mesmo que eu sabia que a dor estava enganando e que era epenas impressão.
Minha visão estava embaçada, e eu tossia por causa da poeira.
Não tinha como ver Agatha, mas eu sabia que ela estava um pouco mais afastada de mim.
- Agatha, o que... - Balbuciei, mas parei na metade da frase, quando ouvi, a alguns centímetros da minha orelha:
- Você não sabe brincar como se deve... Por isso não vai ganhar o jogo. - A voz áspera sussurrou, me fazendo sentir um calafrio, e a dor aguda que agora eu sentia no braço.
Apertei os olhos, e tentei sentar, me apoiando em meu pulso.
Frustada, gani: "O que mais pode ficar pior?"
Me apoiei na parede, para me levantar, e ouvi outra risada, mas dessa vez, de homem.
Engoli em seco, tentando ignorar, e caminhei com dificuldade, para Agatha.
Minhas costas doíam. Parecia que eu tinha caído em cima de uma lança.
Cheguei perto dela, segurando meu pulso.
Agachei, e olhei para ela. De uma foma resumida, constatei o que mais temia:
Agatha estava desmaiada. Sua cabeça sangrava, escorrendo pelo chão da casa.
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Tem alguém aí? - Volume 1
HorreurA escola estava ali desde muitos anos atrás. Ninguém sabe ao certo o que antes existia em seu lugar. Há quem acredite que era apenas uma estrada de terra, há quem acredite que era uma simples casa abandonada, e há os que acreditem que ali era um c...