Vendendo Apenas Sabores [5]

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No limiar do trigésimo século, quando o tecido da realidade já se esgarçava sob o peso das construções artificiais da sensibilidade, os mercadores haviam há muito abandonado a vulgar transação de objetos. Agora, negociavam fábulas afetivas sob medida, efemérides tácteis moldáveis à volição do cliente, e simulacros de convivência, vendáveis em opulentas subscrições mensais. O amor, outrora um sismo imprevisível da alma, tornara-se produto embalado em algoritmos de sedução personalizada, entregue com precisão cirúrgica por drones afetivos.

Nesse teatro de névoas digitais e emoções programadas, vagava uma figura tênue — jovem de nome já dissolvido na palidez do esquecimento coletivo — portadora de uma enfermidade quase mítica: a Síndrome da Aniquilação Sensorial. Moléstia silenciosa e despersonalizante, acometia os habitantes das megacúpulas ciclópicas, esses seres frágeis, anestesiados por notificações incessantes, tutelados por avatares de beleza espectral e desprovidos do vigor visceral da experiência autêntica.

Movida por uma nostalgia sem objeto, buscava, com obstinação quixotesca, um resquício de “volúpia sincera” — expressão fossilizada desde a Segunda Reforma Emocional, quando o espectro do desejo fora domado e domesticado pela engenharia da afetividade. Foi em um beco sombrio do Setor 9, entre entulhos do que outrora se chamava humanidade, que encontrou um relicário anacrônico: um velho decrépito, quiçá um sobrevivente de outro tempo, que vendia sorvetes artesanais impregnados de sensações fossilizadas. Cada sabor, segundo o ancião, era uma cápsula temporal, um pequeno sacrário de memórias extintas.

Um dos gelados evocava a candura intacta de uma infância sem cicatrizes. Outro, de coloração azul-veludo, carregava a melancolia de uma época em que o amor era um pacto silencioso entre dois abismos, e não a coreografia ensaiada da ruína emocional. Foi este que ela escolheu — não por esperança, mas por desespero. O desejo não era mais por prazer, mas por dor genuína.

O contato gélido com os lábios não abalou o corpo. Mas a psique — frágil, exaurida pela abstinência do real — capitulou. A memória artificial que se desencadeou não era uma lembrança: era uma invenção visceral, uma miragem tão vívida que eclipsava o passado verdadeiro. Tocou uma pele que jamais existira, sentiu um calor fabricado com tal perfeição que se tornou indistinguível do que um dia fora humano. E esse lampejo bastou.

Desfez-se. Não em gritos ou agonia, mas com um sorriso tênue, quase litúrgico. Não por ter reencontrado a felicidade — essa entidade extinta —, mas porque, pela primeira vez em eras, a dor cravou sua lança com autenticidade lancinante. E, naquele instante derradeiro, o simulacro foi derrotado pelo excesso de sua própria verossimilhança.

Os mercadores, frios demiurgos da economia emocional, anotaram o episódio como "quebra sensorial de lote 34-B". Uma aberração estatística, um ruído aceitável nos gráficos da indústria da ilusão. Contudo, não desperdiçaram o acontecimento. Converteram-no em propaganda. O sorvete que matara agora era vendido como "O Último Sopro do Amor Autêntico". Seu valor quintuplicou. A tragédia virou luxo. O delírio, commodity.

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