Capítulo 08

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_ Eu nunca entendi e aceitei muito bem quando se referiam a mim como um milagre. Eu fiquei doente e me curei. O começo e o fim de uma doença. O verdadeiro milagre não foi sobreviver ao câncer. O verdadeiro milagre foi tudo o que eu vivi durante, tudo o que suportei e tudo o que amei, mesmo estando desenganada. Depois de ter feito tantos planos na vida, chega a notícia de que você não vai conseguir realizar metade e nem concluir a outra metade que restou. Uma vez me disseram que enquanto você planeja, Deus ri... Então, comecei a pensar que Deus tinha um humor bem peculiar. Ele me tirou a esperança de tudo que um dia eu havia deslumbrado. E um dia me presenteou com a Sula. A gente sempre se surpreende com a única certeza que temos: que um dia vamos morrer. Sofremos porque somos egoístas e não queremos desapegar porque o amor quando chega é tão violento e cativante... E é isso que Sula sempre foi e é. Ela é amor. Ela continua aqui em cada lenço colorido ou batom vermelho que eu experimentar. Ela fica no sorriso de quem teve o privilégio de participar nem que seja de "uma agulhada" da sua vida. Ela fica impregnada naqueles que a geraram e não estavam prontos pra encarar o que não é a ordem natural das coisas. Mas eu escolho o amor ao invés do sofrimento. Ao invés de me revoltar com a vida por perder minha pequenina, eu agradeço por ser presenteada e podermos ter feito parte uma da outra. Aqui não existe espaço pra tristeza. Existe espaço pra saudade. E se  sente saudade é porque foi bom, é porque foi feliz. Só não estamos mais vendo... Mas Sula ainda continua aqui. _ Anna colocava a mão no coração em meio às lágrimas que escorriam pelo seu rosto.

Não sei como conseguiu falar, chorando tanto, do jeito que estava e diante do caixão de Sula. Tão pequenininha, tão pálida e em paz. Ela estava coberta por flores, sem um lenço colorido na cabeça mas com batom vermelho. Um véu transparente a cobria e após as palavras, vieram fechar o caixão porque já estava na hora de ser cremado. A mãe de Sula chorava cheirando um lenço de seda estampado, o pai estava sentado ao seu lado. Ambos sem forças. A luta tinha sido muito longa, muito tempo naquele hospital, muitos tratamentos, muitas noites em claro e muito dor. Agora todos descansariam.

Eu estava sentada ao lado de Victor que não chorava, não esperneava, apenas estava calado e cabisbaixo. Ele estava tão triste que dava para sentir a dor. Lembrei de quando a Bá me contou da minha festa junina aos seis anos. Amor de criança era o mais puro e o que mais doía. Sei que naquele momento ele estava se lembrando do beijinho entre eles, no dia anterior. O dia em que estávamos sorrindo, brincando e dançando. O dia em que Sula, de alguma maneira, se despediu de mim dizendo que eu merecia ser feliz como se estivesse me dando um presente, me dando permissão.

Após a benção do padre, o caixão de madeira branca foi cremado há exatas vinte quatro horas após o corpo de Sula chegar para ser velado, na capela e depois deslocado para a sala refrigerada onde ficaria até o dia seguinte. Duas horas depois entregaram a urna, com as cinzas, aos seus pais e seguimos todos para a pedra do Arpoador. Quando chegamos lá em cima, uma brisa leve tomou nossas faces e eu quase podia sentir a mão da Sula nos acariciando. Um céu azul e o sol brilhando forte eram contraditórios à tristeza amargando dentro do peito.

Os pais de Sula abriram a urna e pegaram um punhado de cinzas, depois oferecendo a Anna e Victor que fizeram o mesmo e depois passaram para mim e Luca. E assim fizemos com os outros que estavam ali: os pais de Anna, Mavi, Stela e Marianinha, os médicos e enfermeiras do hospital que tinham tanto carinho por Sula. Um último suspiro, Anna disse um "Até logo" e soltamos as cinzas ao vento que carregava até o mar, abaixo de nós. Tudo parecia calmo, belo e solar como Sula sempre foi.

Descemos e nos despedimos. Luca foi com Anna e seus pais, Mavi e Stela me ofereceram carona mas eu preferi ficar um pouco sozinha e disse que passaria no estúdio antes de voltar para casa; Marianinha havia ligado para todos os alunos e avisado que não funcionaríamos e foi embora com elas, mas eu precisava ir para lá. Não tinha outro lugar para fugir, onde eu pudesse ficar sozinha e chorar descontroladamente como não fiz desde o velório, até agora.

Doce Vingança, livro 01Onde histórias criam vida. Descubra agora