Tornemos à câmara nupcial, onde se representa a primeira cena do drama original, de
que apenas conhecemos o prólogo.
Os dois atores ainda conservam a mesma posição em que os deixamos. Fernando
Seixas obedecendo automaticamente Aurélia, sentara-se, e fitava a moça com um olhar
estupefato. A moça arrastou a cadeira e colocou-se em face do marido, cujas faces crestava
o seu hálito abrasado.
- Não careço dizer-lhe que amor foi o meu, e que adoração lhe votou minha alma
desde o primeiro momento em que o encontrei. Sabe o senhor, e se o ignora, sua presença
aqui nesta ocasião já lhe revelou. Para que uma mulher sacrifique assim todo seu futuro,
como eu fiz, é preciso que a existência se tornasse para ela um deserto, onde não resta
senão o cadáver do homem que a assolou para sempre.
Aurélia calcou a mão sobre o seio para comprimi a emoção que a ia dominando.
- O senhor não retribuiu meu amor e nem o compreendeu. Supôs que eu lhe dava
apenas a preferência entre outros namorados, e o escolhia para herói de meus romances, até
aparecer algum casamento, que o senhor, moço, honesto, estimaria para colher à sombra o
fruto de suas flores poéticas. Bem vê que eu o distingo dos outros, que ofereciam
brutalmente mas com franqueza e sem rebuço, a perdição e a vergonha.
Seixas abaixou a cabeça.
- Conheci que não amava-me, como eu desejava e merecia ser amada. Mas não era
sua a culpa e só minha que não soube inspirar-lhe a paixão, que eu sentia. Mais tarde, o
senhor retirou-me essa mesma afeição com que me consolava e transportou-a para outra,
em quem não podia encontrar o que eu lhe dera, um coração virgem e cheio de paixão com
que o adorava. Entretanto, ainda tive forças para perdoar-lhe e amá-lo.
A moça agitou então a fronte com uma vibração altiva:
- Mas o senhor não me abandonou pelo amor de Adelaide e sim pelo seu dote, um
mesquinho dote de trinta mil cruzeiros! Eis o que não tinha o direito de fazer, e que jamais
lhe podia perdoar! Desprezasse-me embora, mas não descesse da altura em que o havia
colocado dentro de minha alma. Eu tinha um ídolo; o senhor abateu-o de seu pedestal, e
atirou-o no pó. Essa degradação do homem a quem eu adorava, eis o seu crime; a
sociedade não tem leis para puni-lo, mas há um remorso para ele. Não se assassina assim
um coração que Deus criou para amar, incutindo-lhe a descrença e o ódio.
Seixas que tinha curvado a fronte, ergueu-a de novo, e fitou os olhos na moça.
Conservava ainda as feições contraídas e gotas de suor na raiz dos seus belos cabelos
negros.
- A riqueza que Deus me concedeu chegou já tarde; nem ao menos permitiu-me o
prazer da ilusão, que tem as mulheres enganadas. Quando a recebi, já conhecia o mindo e
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Senhora- José de Alencar
RomanceOBRA DE DOMÍNIO PUBLICO *NÃO SOU A ESCRITORA DA OBRA, ESTOU APENAS REESCREVENDO PARA O APLICATIVO CLÁSSICO DA LITERATURA BRASILEIRA