TERCEIRA PARTE "POSSE"- Capítulo I

1.7K 24 0
                                    



Chegando a seu aposento Seixas nem teve tempo de sentar-se.

Arrimou-se como um ébrio à cômoda que estava próxima ao corredor, e ali ficou no

estupor da alma, violentamente subvertida pela crise tremenda. Parecia uma criatura

fulminada, na qual arqueja apenas um último sopro. Sua respiração angustiada sibilava-lhe

nos lábios, como as vascas do moribundo. E era este o único sinal de vida, nessa

organização jovem e rica de seiva.

De repente saiu daquele torpor, mas foi preciso um esforço supremo para arrancar-se

à insânia que o invadia. Em seu rosto desenhou-se o pavor que dele se havia apoderado

com a idéia de que a vida o abandonava, ou pelo menos que a luz da alma ia apagar-se.

- Deus? Não me tires a vida neste momento. Agora mais do que nunca preciso de

minha razão.

Seixas arrojou-se pelo aposento a passos precípites, esbarrando nos trastes, batendo

de encontro às paredes, alucinado e ao mesmo tempo impelido pelo desejo de arrebatar-se

à obsessão que o aniquilara.

Correu pela casa um olhar ansiado, buscando algum objeto a que seu espírito se

agarrasse, como o náufrago que trava do menor fragmento no meio das ondas em que se

debate. O rico toucador, esclarecido por duas arandelas de cristal com velas cor de rosa,

ostentava os primores do luxo.

Então nessa alma sucumbida, luziu uma centelha. Foi o instinto da elegância por

certo a corda mais vivaz dessa índole poética e fidalga.

Seixas aproximou-se do toucador, levado por indefinível impulso; e entrou a

contemplar minuciosamente os objetos colocados em cima da mesa de mármore; lavores

de marfim, vasos e grupos de porcelana fosca, taças de cristal lapidado, jóias do mais

apurado gosto.

À proporção que se absorvia nesse exame, ia como ressurgindo à sua existência

anterior, a que vivera até o momento do cataclismo que o submergira. Sentia-se renascer

para esse fino e delicado materialismo, que tinha para seu espírito aristocrático tão

poderosa sedução e tão meiga voluptuosidade.

Todos esses mimos da arte pareciam-lhe estranhos e despertavam nele ignotas

emoções; tal era o abismo que o separava do recente passado. Era como a sofreguidão

pueril que os examinava um por um, não sabendo em qual se fixar. Fazia cintilar os

brilhantes aos raios de luz; e aspirava a fragrância que se exalava dos frascos de perfumaria

com um inefável prazer.

Nessa fútil ocupação demorou-se tempo esquecido. Porventura sua memória atraída

pelas reminiscências que suscitavam objetos idênticos a esses, remontava o curso de sua

existência, e descendo-o, depois o trazia àquela noite fatal em que se achava e à pungente

Senhora- José de AlencarOnde histórias criam vida. Descubra agora