Fazia um luar magnífico.
Seixas conversava com D. Firmina na calçada de mármore de frente, que a folhagem
das árvores cobria de sombra.
À direita do marido estava Aurélia reclinada em uma cadeira mais baixa de encosto
derreado, cômodo preguiceiro para o corpo e o espírito que deseja cismar.
Desde a tarde da explicação relativa ao toucador, as relações dos dois companheiros
dessa grilheta matrimonial se tinham modificado.
Como se houvessem naquela ocasião exaurido toda a dose de fel e acrimônia,
acumulada nesse primeiro mês de casados, desde o dia seguinte suas palavras
correspondendo à amenidade e apuro das maneiras, perderam a ponta de ironia, de que
anteriormente vinham sempre armadas, como as vespas de seu dardo sutil e virulento.
Conversavam menos de si; falando sobre coisas indiferentes ou banais, acontecialhes
durante muitas horas esquecerem-se da fatalidade que os tinha unido em uma eterna
colisão para se dilacerarem mutuamente a alma.
Seixas descrevia naquele momento a D. Firmina o lindo poema de Byron, Parisina.
O tema da conversa fora trazido por um trecho da ópera que Aurélia tocara antes de vir
sentar-se na calçada.
Depois do poema ocupou-se Fernando com o poeta. Ele tinha saudade dessas
brilhantes fantasias, que outrora haviam embalado os sonhos mais queridos de sua
juventude. A imaginação, como a borboleta que o frio entorpeceu e desfralda as asas ao
primeiro raio do sol, doudejava por essas flores d'alma.
Não falava para D. Firmina, que talvez não o compreendia, nem para Aurélia que
certamente não o escutava. Era para si mesmo que expandia as abundâncias do espírito; o
ouvinte não passava de um pretexto para esse monólogo.
Às vezes repetia as traduções que havia feito das poesias soltas do bardo inglês; essas
jóias literárias, vestidas com esmero, tomavam maior realce na doce língua fluminense, e
nos lábios de Seixas que as recitava como um trovador.
Aurélia a princípio entregara-se ao encanto daquela noite brasileira, que lhe parecia
um sonho de sua alma pintado no azul diáfano do céu.
Umas vezes ela refugiava-se no mais espesso da sombra, como se receasse que os
raios indiscretos da lua viessem espiar em seus olhos os recônditos pensamentos. Daí, da
escuridão em que se embuçava, entretinha-se a ver as árvores e os edifícios flutuando na
claridade que os inundava como um lago sereno.
Outras vezes inclinava a medo e lentamente a cabeça até encontrar a faixa de luar
que passava entre as duas folhas de palmeira, e vinha esbater-se na parede. Então essa veia
VOCÊ ESTÁ LENDO
Senhora- José de Alencar
RomanceOBRA DE DOMÍNIO PUBLICO *NÃO SOU A ESCRITORA DA OBRA, ESTOU APENAS REESCREVENDO PARA O APLICATIVO CLÁSSICO DA LITERATURA BRASILEIRA