Capítulo IX

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Eram dez horas da noite.

Aurélia, que se havia retirado mais cedo da saleta, trocando com o marido um olhar

de inteligência, estava nesse momento em seu toucador, sentada em frente à elegante

escrivaninha de araribá cor-de-rosa, com relevos de bronze dourado a fogo.

A moça trazia nessa ocasião um roupão de cetim verde cerrado à cintura por um

cordão de fios de ouro. Era o mesmo da noite do casamento, e que desde então ela nunca

mais usara. Por uma espécie de superstição lembrara-se de vesti-lo de novo, nessa hora na

qual, a crer em seus pressentimentos, iam decidir-se afinal o seu destino e a sua vida.

A moça reclinara a fronte sobre a mão direita, cujo braço nu, apoiado na mesa, surgia

entre os rofos de cambraia que frocavam a manga do roupão. Estava absorta em uma

profunda cisma, da qual a arrancou o tímpano da pêndula soando as horas.

Ergueu-se então, e tirou da gaveta uma chave; atravessou a câmara nupcial, que

estava às escuras, apenas esclarecida pelo reflexo do toucador, e abriu afoitamente aquela

porta que havia fechado onze meses antes, num ímpeto de indignação e horror.

Empurrando a porta com estrépito de modo a ser ouvida no outro aposento, e

prendendo o reposteiro para deixar franca a passagem, voltou rapidamente, depois de

proferir estas palavras:

- Quando quiser!

Fernando ao penetrar nessa câmara nupcial, cheia de sombras e silêncio, esqueceu

um momento a pungente recordação que ela devia avivar, e que parecia ter-se apagado

com a escuridão. O que ele sentiu foi a fragrância que ali recendia, e que o envolveu como

a atmosfera de um céu, do qual ele era o anjo decaído.

Aurélia esperava o marido, outra vez sentada à escrivaninha. Ela tinha afastado o

braço da arandela de modo que a luz do gás, interceptada por um refletor de jaspe

representando o carro da aurora, deixava-a imersa em uma penumbra diáfana, que dava à

sua beleza tons de maviosa suavidade.

Seixas sentou-se na cadeira que Aurélia lhe indicara em frente dela, e depois de

recolher-se um instante, buscando o modo por que devia começar, entregou-se à inspiração

de momento.

- É a segunda vez que a vejo com este roupão. A primeira foi há cerca de onze

meses, não justamente neste lugar, mas perto daqui naquele aposento.

- Deseja que conversemos no mesmo lugar? perguntou a moça singelamente.

- Não, senhora. Este lugar é mais próprio para o assunto que vamos tratar. Lembrei

aquela circunstância unicamente pela coincidência de representá-la a meus olhos, tal como

a vi naquela noite, de modo que me parece continuar uma entrevista suspensa. Recorda-se?

Senhora- José de AlencarOnde histórias criam vida. Descubra agora