Eram dez horas da noite.
Aurélia, que se havia retirado mais cedo da saleta, trocando com o marido um olhar
de inteligência, estava nesse momento em seu toucador, sentada em frente à elegante
escrivaninha de araribá cor-de-rosa, com relevos de bronze dourado a fogo.
A moça trazia nessa ocasião um roupão de cetim verde cerrado à cintura por um
cordão de fios de ouro. Era o mesmo da noite do casamento, e que desde então ela nunca
mais usara. Por uma espécie de superstição lembrara-se de vesti-lo de novo, nessa hora na
qual, a crer em seus pressentimentos, iam decidir-se afinal o seu destino e a sua vida.
A moça reclinara a fronte sobre a mão direita, cujo braço nu, apoiado na mesa, surgia
entre os rofos de cambraia que frocavam a manga do roupão. Estava absorta em uma
profunda cisma, da qual a arrancou o tímpano da pêndula soando as horas.
Ergueu-se então, e tirou da gaveta uma chave; atravessou a câmara nupcial, que
estava às escuras, apenas esclarecida pelo reflexo do toucador, e abriu afoitamente aquela
porta que havia fechado onze meses antes, num ímpeto de indignação e horror.
Empurrando a porta com estrépito de modo a ser ouvida no outro aposento, e
prendendo o reposteiro para deixar franca a passagem, voltou rapidamente, depois de
proferir estas palavras:
- Quando quiser!
Fernando ao penetrar nessa câmara nupcial, cheia de sombras e silêncio, esqueceu
um momento a pungente recordação que ela devia avivar, e que parecia ter-se apagado
com a escuridão. O que ele sentiu foi a fragrância que ali recendia, e que o envolveu como
a atmosfera de um céu, do qual ele era o anjo decaído.
Aurélia esperava o marido, outra vez sentada à escrivaninha. Ela tinha afastado o
braço da arandela de modo que a luz do gás, interceptada por um refletor de jaspe
representando o carro da aurora, deixava-a imersa em uma penumbra diáfana, que dava à
sua beleza tons de maviosa suavidade.
Seixas sentou-se na cadeira que Aurélia lhe indicara em frente dela, e depois de
recolher-se um instante, buscando o modo por que devia começar, entregou-se à inspiração
de momento.
- É a segunda vez que a vejo com este roupão. A primeira foi há cerca de onze
meses, não justamente neste lugar, mas perto daqui naquele aposento.
- Deseja que conversemos no mesmo lugar? perguntou a moça singelamente.
- Não, senhora. Este lugar é mais próprio para o assunto que vamos tratar. Lembrei
aquela circunstância unicamente pela coincidência de representá-la a meus olhos, tal como
a vi naquela noite, de modo que me parece continuar uma entrevista suspensa. Recorda-se?
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Senhora- José de Alencar
Storie d'amoreOBRA DE DOMÍNIO PUBLICO *NÃO SOU A ESCRITORA DA OBRA, ESTOU APENAS REESCREVENDO PARA O APLICATIVO CLÁSSICO DA LITERATURA BRASILEIRA